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Brena Marcia escreve monografia sobre trabalho infantil. Leia aqui.

TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL DO SÉCULO XXI:

 

PRINCIPAIS CAUSAS QUE CONTRIBUEM PARA SUA PERPETUAÇÃO.

Brena Márcia Dantas Nogueira

RESUMO

O presente artigo pretende analisar como se dá o trabalho infantil doméstico no Brasil na atualidade, as principais causas de sua persistência, quais são os fatores históricos de incidência e como é realizada a fiscalização para que ocorra sua extinção. Embora disponha de vasto aparato legal, o país não consegue a efetividade necessária no combate para tornar possível a erradicação da prática. A realização da pesquisa ocorreu através do modelo quali-quantitativo, de natureza bibliográfica, com análise pura dos resultados e objetivo exploratório. O resultado demonstra que o problema está muito mais relacionado a fatores sistemáticos da sociedade do que ao aspecto da legislação que protege a infância, demonstra, ainda, que o suposto desenvolvimento que um trabalho mal remunerado pode gerar é completamente enganosa.Palavras-chave: Empregada doméstica; Escravização; Feminização da pobreza;

Inserção precoce no mercado de trabalho; Trabalho infantil doméstico;

INTRODUÇÃO

O trabalho infantil doméstico é caracterizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Convenção n° 182) como uma das piores formas do trabalho infantil.

Os órgãos de fiscalização encontram barreiras de supervisão quase que intransponíveis, haja vista que sua realização se dá essencialmente no ambiente doméstico e a Constituição pátria resguarda a inviolabilidade do lar. Em um país de raízes eminentemente escravagistas como o Brasil, a prática de trabalho doméstico por crianças e adolescentes encontra bases de sustentação sólidas e atinge essencialmente meninas racializadas com ínfimo aparato financeiro, o bode expiatório da marginalização social.

O perfil predominante daqueles que são explorados por meio do referido tipo de trabalho passa por constante perpetuação e não difere em muito daquele descrito por Del Priore (2008) ao falar da Roda dos Expostos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua) realizada em 2019 corroboram o supracitado.

As vítimas são aliciadas principalmente com falsas perspectivas de que terão acesso aos estudos e conseguirão melhorar a vida.

A dificuldade em se debruçar sobre o assunto e a naturalização com o qual ele é tratado desemboca em uma mudez coletiva sobre o tema, ato que contribui de maneira colossal para sua perpetuação. Cultural e socialmente, o tópico praticamente não é abordado dada a sua natural invisibilidade decorrente do ambiente onde ocorre e quando o é, não é encarado como um trabalho. Academicamente, aqueles que se dedicam à pesquisa sobre o tema buscam abordar a legislação relativa ao conteúdo.

O trabalho infantil doméstico relaciona-se de maneira direta com os direitos das mulheres. Nesse sentido, observa-se que as principais vítimas desse tipo de exploração são meninas negras e pobres e as consequências advindas da situação perduram pela vida inteira e são de penosa superação. Ademais, a prática é responsável por impulsionar em muito a exequibilidade de outros tipos de violência.

Surpreendentemente, apesar de todos esses fatores, a temática não costuma ser abordada de modo efetivo dentro dos estudos de gênero. Percebe-se, em torno do tema, um tipo de opressão que se coaduna com as demais razões citadas: a vítima é silenciada por um acúmulo de vulnerabilidades, quais sejam: o gênero, raça e classe e, nesse caso, acentuados pelas condições etárias inerentes a situação.

A promoção de pesquisas sobre a referida problemática guarda extrema relevância para o contexto social brasileiro. Na medida em que se compreende os fundamentos que dão causa a perduração do Trabalho Infantil Doméstico (TID) são evidenciadas as raízes sobre as quais a sociedade brasileira se firmou e depreendem-seos porquês da manutenção de uma cultura tão fortemente patriarcal, racista e elitista.

Sob os aspectos práticos, é substancial que o tema seja abordado para que sejam desconstruídos os sofismas que sustentam essa prática. Dessa forma, uma maior incidência de pesquisas sobre a temática favorece a tendência da discussão extrapolar os círculos acadêmicos e, assim, chegar de maneira mais efetiva à sociedade.

A pesquisa torna-se relevante na medida em que busca traçar como o histórico brasileiro impulsionou o surgimento do TID e permanece sustentando a prática ainda hoje, vitimando sucessivamente o mesmo perfil. Além disso, perquire como se dispõem os meios de combate a referida problemática atualmente, qual a efetividade e quais os fatores que freiam sua eficácia.

Para uma melhor compreensão da temática abordada neste artigo, o procedimento técnico adotado é o bibliográfico, por meio do uso de artigos em periódicos científicos, leis, dissertações, matérias jornalísticas, podcast e tratados internacionais ratificados pelo Brasil. No que diz respeito a abordagem do problema, a pesquisa será quali-quantitativa, haja vista que abordará o tema a partir de pesquisa acadêmica não mensurável, além de apresentar dados estatísticos da problemática. A utilização dos resultados acontecerá de modo eminentemente puro, pois busca incrementar o conhecimento já existente sobre a referida conjuntura. O objetivo da pesquisa é essencialmente exploratório, posto que se tenciona a familiarização com o

tema.

Com isso, dividiu-se a pesquisa nos seguintes capítulos: o primeiro aborda o trabalho infantil doméstico na contemporaneidade, relacionando-o com a herança do período escravagista que perdurou no Brasil e suas particularidades. Além disso, disserta ainda sobre os mitos e falácias comumente utilizados para justificar a prática do trabalho infantil doméstico, buscando torná-la menos danosa a suas vítimas.

O segundo capítulo, por sua vez, demonstra a invisibilização de que padece o tema e as dificuldades para aferir dados sobre a temática. Além disso, aborda os fatores que possibilitam a perpetuação do TID na sociedade contemporânea, quais as situações que costumam levar as pessoas a figurarem como vítimas da prática e as justificativas usadas para ludibriá-las.

No terceiro capítulo, discorre-se sobre a relação desenvolvida entre a prática do TID com a temática de gênero. A partir da inserção das mulheres no mercado de trabalho e o crescimento do número de família chefiadas por mulheres, é possível observar como estas estão muito mais suscetíveis a ingressar em subempregos. As condições precárias de emprego e suas inerentes consequências as quais estão submetidas têm forte potencial para figurar como fator de risco para ocorrência do TID.

Por fim, há uma explanação de como o combate à prática se dá no Brasil. Ao demonstrar o aparato legal que envolve o tema, é possível perceber que o cerne do problema não é legislativo, vez que o conjunto de leis aborda muito bem a problemática.

  1. O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO ENQUANTO HERANÇA DA

ESCRAVIDÃO E OS MITOS QUE ENVOLVEM E SUSTENTAM A PRÁTICA

A escravização promovida no Brasil não apresentou um traço de exterioridade que destinaria os negros apenas a lavoura e ao trabalho externo, longe da vida pessoal dos patrões. Na realidade, a dinâmica social estava intrinsecamente entrelaçada à realidade escravocrata.

Os povos escravizados, sobretudo as mulheres, constituíam uma parte essencial à manutenção da dinâmica das relações sociais vividas na época. Aquelas cozinhavam, limpavam, costuravam, vestiam suas patroas, cuidavam das crianças de seus senhores.

Assim, a relação era de absoluta intimidade com seus algozes.

O trabalho infantil doméstico, outrora utilizado pelos indígenas como meio de educação das crianças, passou a ser largamente explorado em moldes mais semelhantes aos que se conhece hoje durante o período escravocrata. Após a abolição da escravidão, as meninas que eram escravizadas nas casas de seus senhores são admitidas como auxiliares contratadas. O perfil, obviamente, era de moças pobres, racializadas e órfãs.

As condições de trabalho não diferem muito daquelas empregadas durante o período em que eram escravizadas (DEL PRIORE, 2008).

Depois do fim da escravização – ao menos em termos formais – no país, as Casas de Misericórdia surgem como a mais relevante instituição no que diz respeito ao tratamento das crianças e adolescentes que viviam à margem da sociedade no período pós-abolição. A medida mais emblemática adotada pela instituição certamente é a Roda dos Expostos. Com a inexistência de políticas públicas visando a reintegração dos recém-libertos, estes eram encaminhados às Santas Casas de Misericórdia com o intuito de limpar as ruas e preparar esses indivíduos para o trabalho, que se dava em condições exploratórias, nas próprias instituições ou em casas de famílias substitutas. (CARNEIRO, 2018).

A iniciativa promovida pelas Santas Casas de Misericórdia, com o apoio e aval do poder público, demonstra muito bem como o Estado vem tratando historicamente o tema. O desejo de limpeza social ainda é muito latente atualmente, senão, veja-se as recentes iniciativas promovidas em São Paulo buscando tirar de vista os moradores de rua.

O cenário não muda quando os “poluidores” sociais são crianças. É uma perspectiva que ajuda a compreender por que o combate ao trabalho infantil não se dá de maneira efetiva, além de explicar a internação em massa de crianças e adolescentes ditos infratores no sistema socioeducativo. Levantamento realizado pela Comissão da Infância e Juventude (CIJ) do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio do Grupo de Trabalho de Acompanhamento da Política Nacional de Atendimento Socioeducativo apontou para a superlotação nas instituições socioeducativas, com um déficit direto de mais de duas mil vagas e lista de espera de mais de cinco mil.

A característica de proximidade perdurou até a atualidade. Nesse sentido, o que se vê hoje nos casos de Trabalho Infantil Doméstico é um retrato que recorda o período escravocrata. Logo, o perfil das vítimas e o trabalho guardam muitas semelhanças.

Deveria ser consolador ao menos dizer que as sanções sofridas pelas vítimas quando o trabalho não é cumprido como os patrões esperam foram abrandadas, mas não é verdade. Os casos de Marielma2 , espancada e morta pelos patrões enquanto trabalhava como babá em Belém ou de Madalena3 , escravizada desde os oito anos por uma família mineira demonstra que o tratamento guarda fortes raízes daquele empregado há 300 anos.

Sendo assim, em seu cerne, a dinâmica social conserva atualmente de modo muito latente heranças do comportamento outrora empregado na Roda dos Expostos. O motivo para a manutenção do status quo é, na verdade, bastante simples: são essas vítimas que, com um trabalho extenuante, sustentam a conjuntura social do mesmo modo. Não há, assim, interesse em retirar as vítimas do trabalho invisível que permite que as classes mais abastadas sigam avançando e realizando seus objetivos (CAL, 2016b).

A partir da compreensão dos aspectos históricos brasileiros que estabeleceram a prática do TID, é possível perceber que a atualidade guarda ainda muitas semelhanças com o passado. Todavia, seria leviano atribuir apenas ao passado histórico a persistência da prática dessa realidade. Não há conduta que sobreviva a 300 anos se não contar com constante aceitação da sociedade na qual é praticada.

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36433363

https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-expoecaso-extremo-de-racismo-no-brasil-do-seculo-xxi.html

A continuidade da execução do TID se dá, em grande medida, em decorrência de mitos em torno do tema tão enraizados que são capazes de sustentar uma prática tão penosa.

Como principal sustentáculo da ação, indubitavelmente se pode citar a precária relação mantida pela vítima e sua família com o sistema educacional. Surge, a partir da carência educacional, a falácia de que “é melhor trabalhar do que roubar”, ignorando completamente a opção do estudo, de modo que o caminho para pessoas menos abastadas resume-se ao trabalho ou a criminalidade (PAGANINI, 2014)Inseridos precocemente em um mercado de trabalho e com uma minguada formação que só permite o exercício de funções braçais, com baixa ou inexistente perspectiva de crescimento, tem-se início um ciclo vicioso. Quanto menos estudam, mais cedo entram no mercado de trabalho, pior remunerados são e, prematuramente, seus filhos abandonam os estudos para trabalhar. É possível perceber que conforme cresce o valor auferido como renda, cai o número de indivíduos que começaram a laborar antes dos 14 anos (FREITAS ET AL, 2017).

Há de se ressaltar, ainda, um outro fator de extrema relevância para o assunto: o planejamento familiar. Quanto mais filhos tem um casal pobre, mais baixo é o padrão de

vida que lhes é ofertado e maiores as chances de não estudarem porque precisam

trabalhar (PAGANINI, 2014).

Além do fator educacional, um outro sustentáculo para a prática está na confusão

que se faz entre o auxílio que uma criança ou adolescente pode prestar nos serviços

domésticos e a exploração do trabalho doméstico propriamente dito. Há, ainda, a falsa

concepção de que a exploração do TID se dá apenas fora de casa, o que não é verdade,

conforme aduz Patriota e Alberto (2014), ao prever ao menos três formas distintas de

concepção do TID.

Nesse viés, classifica-se o TID essencialmente em três modelos: I. Socialização:

aquele realizado na casa da própria família. II. Ajuda: trabalho realizado na própria casa

ou na casa de terceiros, onde a criança assume responsabilidades domésticas que

permitem aos adultos da casa ausentar-se por período mais longo de tempo. III.

Remunerado: é mais nítida a relação empregatícia entre os entes, e a criança ou

adolescente costuma receber pagamento em virtude do trabalho desenvolvido.

(PATRIOTA; ALBERTO, 2014).

2 FATORES QUE MAIS CONTRIBUEM PARA PERPETUAÇÃO DA PRÁTICA

A priori, é necessário citar a invisibilizarão da problemática. Não há como se combater aquilo que não é enxergado socialmente, e não há como enxergar um

problema que não é denunciado. Ao considerar a natureza do trabalho que se

desenvolve no ambiente doméstico, já é possível identificar um obstáculo que

desencadeia a dificuldade de visualização da prática socialmente. Além disso, outro

fator que contribui imensamente para a subnotificação dessa situação é a recusa, porparte das vítimas, em denunciarem sua condição.

A pesquisa realizada por Cecilio e Silveira (2014, p. 50) revela que os dados aferidos na cidade de Divinópolis (Minas Gerais) não correspondem à realidade fática, haja vista que parcela das crianças e adolescentes se negaram a responder à abordagem.

Como razão para não a responder, os sujeitos relatam o medo de que o patrão seja

notificado. Os autores indicam, dessa maneira, um dos maiores problemas para

identificar e para tratar os casos de trabalho infantil no Brasil.

Demonstra, portanto, a latente necessidade em um modo de garantir que aqueles

que tiverem a coragem de denunciar não sofrerão reprimendas posteriores no mercado

de trabalho.

Como um dos fatores mais emblemáticos ao tratar do tema, tem-se as relações

desenvolvidas entre as vítimas e o sistema educacional. Cecilio e Silveira (2014, p. 51), ao analisarem uma série de dados, relacionando-os ao trabalho infantil, demonstram que o fator do critério educacional apresenta-se como aspecto estratégico para a observação de que quanto menos estudados são os pais, mais cedo suas crianças começam a trabalhar.

As informações aparecem como a perpetuação de um ciclo, uma vez que os pais

não tiveram oportunidade para estudar, seus filhos são mais incentivados ao trabalho

que aos estudos. A tese é corroborada pelos dados posteriormente apresentados pelas

autoras na relação repetência x trabalho. O percentual de repetência de alunos que

trabalham ficou em 27,3%, enquanto o percentual daqueles que não trabalham foi

fixado em 5,9%. Assim, alunos que trabalham têm uma chance 6x maior de repetir ou

de evadir.

Alberto et al (2005) identifica, ainda, as escolas como ambientes muito hostis

para crianças trabalhadoras. A não-identificação com o ambiente escolar desencadeia a

dificuldade em integrar-se socialmente e, consequentemente, o isolamento da

convivência com indivíduos da mesma idade. Alberto et al (2011) aborda também a

educação profissionalizante no país, criada no século passado e destinada

essencialmente às pessoas pobres. É uma tendência que ainda se manifesta de modo

muito claro no Brasil e as mudanças nesse cenário devem muito à política de cotas. As

escolas profissionalizantes ainda hoje apresentam como intuito formar profissionais

razoavelmente qualificados para o mercado de trabalho. Dessa forma, o mito de que

aquele que começa a trabalhar cedo tem uma vida melhor é novamente derrubado.

Por fim, convém frisar que até o suposto crescimento econômico que advém de

um trabalho sub-remunerado não passa de uma fraude. Um pagamento exíguo por um

serviço pode até diminuir os custos e aumentar a receita sobre determinado negócio,

todavia, o mero crescimento da receita não implica em desenvolvimento econômico

efetivo.

Não se pode considerar desenvolvimento econômico o mero aumento da receita,

já preleciona Amartya Sen (2000). O autor inova ao propor um conceito de

desenvolvimento econômico como liberdade. De acordo com o professor, não é mais

possível considerar como desenvolvimento econômico o mero crescimento econômico.

Progressivamente, a ideia de desenvolvimento deixa de ser calcada no aspecto

meramente numérico do crescimento e passa a abranger critérios socioculturais. Sendo

assim, modifica-se também os critérios que fazem de uma sociedade desenvolvida ou

não. O percentual de igualdade social entra como uma importante variável em

detrimento do lucro anual bruto.

Sob a perspectiva da teoria de Sen (2000), nações que vivem sob regime

autoritário jamais poderiam alçar o status de nações desenvolvidas, independente de

quanto crescesse o Produto Interno Bruto (PIB). Para exemplificar, pode-se citar o caso

brasileiro durante a ditadura civil-militar. Em dada época, ocorreu no Brasil o chamado

milagre econômico – e aqui não está a se aferir em que termos deu-se a iniciativa e sua

legitimidade – com uma súbita explosão do PIB, todavia, jamais poderia se considerar o

país como desenvolvido, haja vista que as liberdades individuais encontravam-se

cerceadas (SANZ, 2017).

Na América Latina, a teoria de Amartya Sen é reforçada pelo autor Celso

Furtado (2009) ao tratar da teoria do desenvolvimento e subdesenvolvimento. O autor

trata, em sua tese, sobre a exportação de tecnologia dos países centrais para os países

periféricos e como essa dinâmica de desenvolvimento invariavelmente desemboca na

criação de desigualdades através da concentração de renda, como uma espécie de lei

universal.

Para Furtado (2009), para reverter a supracitada situação, o desenvolvimento

exigiria um projeto político fundamentado na mobilização de recursos sociais. A teoria

do autor é corroborada pela autora Martha Nussbaum (2013), responsável por trazer a

perspectiva de Sen para o âmbito da Justiça. De acordo com Nussbaum (2013) uma

sociedade só estaria apta a atingir a justiça social quando conseguisse prover o mínimo

fundamental para as necessidades de sua população, sobretudo no que diz respeito à

dignidade da pessoa humana.

3 GÊNERO COMO UMA VARIÁVEL NO TID

Ao considerar o ambiente onde se desenvolve a prática do TID, faz-se mister

que seja abordada a questão do machismo e da misoginia ao tratar do tema. O trabalho

doméstico, historicamente, não é considerado um trabalho. As habilidades exigidas para

sua realização são consideradas como inerentes à mulher e não são vistas como aspecto

profissionalizante (CECILIO; SILVEIRA, 2014).

Por serem considerados aspectos intrínsecos ao desenvolvimento feminino,

conforme conceitua Patriota e Alberto (2014, p. 908), o TID mantém uma dinâmica

curiosa com as questões de gênero. Por um lado, é nítido que quanto mais sexista for

uma sociedade, maior é o desenvolvimento de um trabalho doméstico não reconhecido

como trabalho, o que influencia diretamente na incidência do TID.

Sob outra ótica, porém, há de se refletir que a opressão sofrida pelas meninas

trabalhadoras advém principalmente de mulheres, conforme corrobora Carvalho Porto e

Dimer Dorz (2018) ao analisar o modo através do qual as obrigações domésticas são

transmitidas. São as patroas e suas filhas quem mantém maior relação de proximidade

com as vítimas do TID.

A dinâmica pode ser traduzida em um ciclo de opressão esquematizado na

fórmula: homens oprimem socialmente mulheres, as mulheres oprimidas em seu círculo

social oprimem suas empregadas.

A título de exemplo, o Brasil regulamentou o trabalho doméstico há

pouquíssimo tempo – apenas em 2015 – e a legislação continua sendo desrespeitada.

Portanto, se o trabalho doméstico desenvolvido por mulheres adultas encontra tantos

percalços para ser reconhecido, quando esse mesmo tipo de trabalho é desenvolvido por

crianças e adolescentes, predominantemente pobres e racializadas, atinge-se o ápice da

depreciação, ilustrando muitíssimo bem o fenômeno trazido pelo feminismo póscolonial e que o professor Boaventura de Souza Santos (2014, p. 294) chamou de

caráter acumulativo das desigualdades.

Aliás, Cal (2016, p. 41.) demonstra que há uma relação direta entre o enorme

contingente de empregadas domésticas no Brasil e a aceitação social do TID. De acordo

com a Wentzel (2018, s.p.), o Brasil é o país com o maior número de empregadas

domésticas do mundo. A situação é um legado claro da escravidão e as principais razões

evocadas para justificar tal conjuntura são o racismo estrutural e a desigualdade de

gênero, fenômeno que pode ser traduzido como o que Diane Pearce conceituou em 1978

como feminização da pobreza.

O fenômeno da feminização da pobreza pode ser traduzido em seis diferentes

perspectivas conforme Costa et al (2005, p. 15 e 16):

  1. a) aumento da proporção de mulheres entre os pobres; b) aumento

da proporção de pessoas em famílias chefiadas por mulheres entre os

pobres; c) aumento absoluto na incidência ou na intensidade da

pobreza entre as mulheres; d) aumento nos diferenciais de incidência

ou de intensidade da pobreza entre mulheres e homens; e) aumento na

incidência ou na intensidade da pobreza entre as pessoas de famílias

chefiadas por mulheres; e f) aumento nos diferenciais de incidência ou

de intensidade da pobreza entre as pessoas de famílias chefiadas por

mulheres e de famílias chefiadas por homens.

Substancialmente, indica que mulheres estão mais suscetíveis a figurar entre os

entes mais pobres da sociedade. O crescimento no número de mulheres que figuram

como chefes de família e a consequente obrigação solo de sustentar sua prole as

impulsiona a entrar, de modo precário, no mercado de trabalho. Dessa forma, acabam

por submeter-se a subempregos (SILVEIRA; SILVA, 2013).

Assim, resta demonstrado que, quanto mais precária a educação e as condições

de vida da família, maior a probabilidade de uma criança dar início ao TID. Além disso,

convém relembrar os dados sobre empregadas domésticas no país e como essas,

historicamente, têm precarizadas suas condições de trabalho. Desse modo, pode-se

traçar uma linha direta entre a feminização da pobreza advinda da precarização das

condições laborais, que faz com que as mulheres se submetam a subempregos com a

vultosa prática do trabalho infantil doméstico no país.

4 ASPECTOS QUE DIFICULTAM O COMBATE AO TID

No Brasil, há um forte aparato legislativo para combater o trabalho infantil de

modo geral e com especial rigidez aqueles classificados como degradantes, caso do

trabalho infantil doméstico.

A Constituição Federal, em todo o seu texto, mas sobretudo no art. 227, assegura

os direitos das crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente reforça essa proteção,

quando trata de maneira especializada cada direito previsto (BRASIL, 1988). Além

disso, o Brasil é signatário de outras normas internacionais que versam sobre o tema,

cite-se a Convenção Americana de Direitos Humanos (PACTO DE SAN JOSÉ DA

COSTA RICA, 1969), que trata dos direitos humanos de modo geral, dando especial

proteção à criança nos artigos 19 e 27. Ainda, ao tratar especificamente do tema, o

Brasil é signatário das convenções 138 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO

TRABALHO, 1973) e 182 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO,

2000) da OIT, que regulamentam o trabalho infantil e as piores formas de trabalho

infantil, respectivamente.

Sob esse óbice, é nítido que a falha ao combater o trabalho infantil não está no

aspecto legal, mas em sua efetivação. Carvalho e Dimer (2018, p. 3) esclarecem que, de

acordo com a OIT, ao se combater a prática, o que se busca é o enfrentamento da

exploração do trabalho infantil. Ao realizarem a distinção entre exploração do trabalho

infantil e a realização de tarefas adequadas para a idade das crianças, os autores

desmitificam um dos maiores empecilhos para o combate efetivo ao TID.

Para que a legislação pátria sobre o assunto seja concretamente aplicada, é

necessária a compreensão sobre o que é o TID. A maioria das pessoas acredita que

aqueles que pleiteiam pelo fim do TID estão batalhando para que as crianças não

auxiliem nas tarefas domésticas, uma concepção completamente deturpada. Sendo

assim, é crucial que as ações de combate se pautem no sentido de tornar possível para a

sociedade o entendimento do que é, de fato, o TID, a fim de entender que combate-se a

exploração.

Apesar de um amplo arcabouço jurídico, as instituições responsáveis por efetiválo não são bem-sucedidas em seu trabalho. Como principais pontes entre o poder

público e o problema, encontram-se as escolas, o Conselho Tutelar e o Centro de

Referência e Assistência Social (CRAS). No entanto, nota-se que esses órgãos dispõem

de uma capacitação deficiente para lidar com a problemática.

Silva (2009, p. 53), ao dissertar sobre a composição do conselho, cita apenas a

presença de membros da sociedade civil e do poder público. Sendo assim, ao não citar a

presença de crianças e adolescentes como parte ativa nos conselhos, os referidos órgãos

costumam ter em sua direção presença eminentemente adulta, que dificilmente

consegue conectar-se aos jovens de modo concreto. A presença de adolescentes saídos

do mundo do trabalho, por exemplo, traria uma contribuição bastante rica para o

desenvolvimento da atuação dos conselhos.

Importante frisar que a formação sem a presença daqueles efetivamente afetados

pelo problema propõe uma perspectiva puramente externa que certamente não é a mais

satisfatória. Ademais, integrar esses jovens em órgãos diretamente relacionados à

proteção da infância traria enriquecimento para ambos os lados da situação: os órgãos

de proteção contariam com uma visão muito mais apurada e íntima do assunto, gerando

a adequada integração desses jovens ao mercado de trabalho, favorecendo suas

perspectivas de futuro.

 O Núcleo de Cidadania de Adolescentes (NUCA), entidade de cunho municipal

formado como uma das ações do Selo Unicef com o intuito de engajar adolescentes nos

locais onde estão inseridos, formado principalmente por adolescentes, apresenta um

potencial considerável para enfrentar o problema de modo efetivo, tendo em vista que

sua formação contribui para localização de focos do problema – algo extremamente

importante do TID – além de possibilitar um contato factual com as vítimas.

Outrossim, Carvalho e Dimer (2018, p. 5), ao dissertarem sobre a precoce

inserção das meninas no trabalho doméstico, ocorrida por volta dos 10 anos,

demonstram que o combate ao TID está intrinsecamente relacionado ao sexismo, de

modo que não há como separá-los.

A legislação brasileira é bem clara no que diz respeito ao TID, mas não o

relaciona, em momento algum, com a cultura patriarcal enraizada. Nesse sentido, as

medidas de combate ao TID não abordam de maneira conjunta as raízes patriarcais do

país. Assim, é contraproducente ratificar inúmeros tratados que dizem respeito aos

direitos da criança e continuar negligenciando os direitos das mulheres.

O podcast Café da Manhã4

, da Folha de São Paulo, dissertou, no aniversário de

15 anos da Lei Maria da Penha, sobre como legislação brasileira é eminentemente

punitivista no que diz respeito aos direitos femininos. Não se busca prevenir a violência

(como propôs a lei 11.340/2006, que também demonstra graves problemas de

aplicação), mas sim punir aquele que já a cometeu. Portanto, embora de demasiada

importância, a educação para que se respeite os direitos das mulheres é quase nula.

Por fim, é indispensável falar sobre a regionalização que envolve a prática e

como esse aspecto deve ser usado ao realizar o combate. A pesquisa em 2018 realizada

pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), revela que é possível verificar que o TID é

regionalizado, concentrando-se principalmente nas regiões nordeste, sudeste e norte.

Tal situação demonstra uma herança muito clara da escravidão, haja vista que se

encontra onde perdurou mais intensamente a prática escravagista. Mas, se o trabalho

infantil é regionalizado, as estratégias de combate também devem seguir a mesma

tendência. O Brasil tem dimensões continentais e é possível perceber como a cultura de

diferentes regiões contrastam muito fortemente.

Sob essa ótica, é bastante simples inferir que uma campanha idealizada na região

Sudeste muito provavelmente não terá a mesma eficácia no Nordeste. A exploração do

TID ocorre de modos diferentes a depender do local, por força da cultura dominante do

lugar. Portanto, o combate também deve acontecer com uma ótica individualizada para

que se alcance o máximo de efetividade.

Em conclusão, ao analisar a campanha realizada pelo TST em 2021 (TST, 2021),

o que se pode inferir é que a logística da campanha é bem elaborada. Abordam-se as

formas de trabalho infantil, a desconstrução dos mitos e o futuro das crianças quando

retiradas dessa realidade. Todavia, há uma falha em fazer essa campanha chegar de

maneira efetiva até quem deveria: a sociedade de modo geral. O trabalho do TST seria

melhor sucedido se ramificado por uma rede de órgãos capazes de promover a

campanha de maneira muito mais direta.

A maior parte da sociedade civil tem um contato ínfimo com os tribunais