Coluna Jales Figueiredo

Crime de descumprimento de medida protetiva de urgência. Violência Doméstica.

 

Em recente decisão da Corte Superior, realizada em 22/04/2025, tendo como rel. Min. Ribeiro Dantas, em que houve unanimidade de votos, declara no final de que há bis in idem no seu descumprimento, pois existe uma grande incidência deste fato.

A questão consiste em saber se a aplicação da agravante do art. 61, II, f, do Código Penal, em conjunto com o art. 24-A da Lei Maria da Penha, configura bis in idem.

O Tribunal a quo entendendo configurar afastou a agravante em questão, pois “… o crime de descumprimento de medidas protetivas está previsto na própria Lei n. 11.340/2006, sendo certo que o cometimento do delito em contexto de violência doméstica contra a mulher caracteriza circunstância elementar do crime, já considerada pelo legislador ao tipificar a conduta e cominar a pena”.

Sobre o tema, verifica-se que a Sexta Turma do STJ, julgando caso similar (AgRg no AREsp 2.593.440/SC, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 16/8/2024), entendeu que a agravante prevista no art. 61, II, f, do Código Penal se aplicaria ao crime de descumprimento de medida protetiva previsto no art. 24-A da Lei n. 11.340/2006.

No entanto, ao examinar as razões que fundamentaram a conclusão do julgamento dos recursos especiais sob a sistemática dos recursos repetitivos, constata-se que a lógica empregada na fixação do Tema 1.197/STJ difere do contexto em que se insere a aplicação da mesma agravante ao delito de descumprimento de medida protetiva previsto na Lei Maria da Penha.

Isso porque, a ratio decidendi que orientou a inteligência do STJ, no Tema 1.197/STJ, ao estabelecer a aplicabilidade da agravante insculpida no art. 61, II, f, do Código Penal ao delito descrito no art. 129, § 9º, do mesmo diploma legal, reside na necessidade de assegurar uma resposta penal mais rigorosa às condutas caracterizadas pelo abuso de autoridade ou pelo exercício de relações de intimidade, sejam elas de coabitação, hospitalidade ou vinculação doméstica, mormente quando envolvem violência contra a mulher, consoante definido pela legislação específica. Tais condutas representam uma violação à dignidade da pessoa humana, demandando uma intervenção consentânea à gravidade do comportamento delituoso.

O art. 129, § 9º, do Código Penal possui como desiderato punir o crime de lesão corporal perpetrado no âmbito de relações domésticas ou familiares, independentemente do gênero da vítima. A norma busca tutelar o ambiente de convivência pessoal e familiar, preservando a harmonia e a segurança nesses espaços, sendo aplicável a todas as vítimas, indistintamente. Destarte, a lei não circunscreve sua proteção apenas a pessoas que se identificam com o gênero feminino.

A Lei n. 11.340/2006 foi instituída para coibir a violência doméstica, reconhecendo as assimetrias históricas nas relações de gênero e demandando tutela diferenciada, seja no âmbito doméstico ou extradoméstico. Seus dispositivos encontram fundamento na compreensão de que tais relações demandam medidas mais rigorosas para enfrentar a violência decorrente de desigualdades estruturais.

A aplicação simultânea de normas penais exige rigorosa análise hermenêutica, mormente quando se trata de dispositivos que tutelam idêntico bem jurídico. No caso específico da agravante do art. 61, II, f, do Código Penal e das disposições da Lei Maria da Penha, verifica-se potencial risco de duplicidade punitiva, porquanto ambas as normas convergem na reprovação de condutas que vulneram a dignidade da mulher em contextos de violência doméstica e familiar.

A Lei n. 11.340/2006, detentora de natureza especial, destaca-se em face das disposições gerais do Código Penal ao tutelar especificamente as dinâmicas de violência de gênero. Fundamentada no princípio da especialidade, que privilegia a norma especial em situações de coexistência normativa, a Lei Maria da Penha já integra, em seus dispositivos, os elementos justificadores de agravamento da sanção previstos no art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal.

Embora o art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal possa encontrar aplicação em contextos diversos daqueles abrangidos pela Lei Maria da Penha, no caso específico do art. 24-A, verifica-se sobreposição quanto ao fundamento e aos objetivos perseguidos por ambos os dispositivos. Impõe-se, portanto, a primazia da norma especial, resguardando-se a coerência do sistema jurídico e evitando-se a duplicidade sancionatória por razões idênticas.

Resta evidente, assim, a ocorrência de bis in idem na aplicação simultânea do disposto no art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal e no art. 24-A da Lei Maria da Penha, pois ambos qualificam a mesma conduta de violência contra a mulher. Tal prática, ao desconsiderar os limites sistemáticos do ordenamento jurídico, viola os postulados da proporcionalidade e da vedação à dupla valoração punitiva.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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