Artigo

Recuperação judicial em cooperativas médicas: uma análise da viabilidade e dos aspectos jurídicos.

FORTALEZA

2025

João Victor Maia Pinheiro Barbosa

Recuperação judicial em cooperativas médicas: uma análise da viabilidade e dos aspectos jurídicos.

Artigo submetido à publicação no site jurídico “direitoce.com.br.”

Orientador: Prof. Luiz Eduardo dos Santos

Revisor: Prof. Sabino Henrique

FORTALEZA

2025

RESUMO

 

Este artigo analisa a complexa questão da extensão do instituto da recuperação judicial a cooperativas médicas, notando as crescentes tendências jurisprudenciais que buscam abranger um leque mais amplo de atores na busca de auxílio diante de crises financeiras. O texto explora a finalidade fundamental da recuperação judicial, que é proporcionar uma saída viável para empresas enfrentando dificuldades financeiras, enquanto equilibra a preservação da atividade econômica e a função social da empresa, conforme preceitos constitucionais. O estudo reconhece que o legislador estabeleceu regras específicas para a recuperação judicial, excluindo determinados tipos societários, como as pperadoras de planos de saúde, que estão sujeitas a regimes regulatórios rigorosos sob a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Contudo, a realidade demonstra que muitas Cooperativas Médicas operam como empresas tradicionais, realizando atividades empresariais e enfrentando crises econômico-financeiras. O artigo também destaca a relevância da função regulatória da ANS, que desempenha um papel crucial na proteção dos beneficiários de planos de saúde, especialmente em situações de crise. O cerne da discussão reside na incongruência entre a alteração legal que permite a recuperação judicial das cooperativas médicas que oferecem planos de saúde e o sistema regulatório existente, bem como a finalidade original da Lei de Falências e Recuperação Judicial. Portanto, o artigo enfatiza a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a aplicação da recuperação judicial a cooperativas médicas e a proteção dos consumidores no setor de saúde suplementar.

Palavras-chaves: recuperação judicial; cooperativas médicas; função social da empresa; Agência Nacional de Saúde Suplementar; equilíbrio regulatório

 

 ABSTRACT

 

This article analyzes the complex issue of extending the judicial recovery institute to medical cooperatives, noting the growing jurisprudential trends that seek to cover a wider range of actors in the search for help in the face of financial crises. The text explores the fundamental purpose of judicial recovery, which is to provide companies with a viable way out of facing financial difficulties, while balancing the preservation of economic activity and the company’s social function, in accordance with constitutional precepts. The study allows the legislator to distribute specific rules for judicial recovery, excluding certain corporate types, such as health plan operators, which are subject to specific regulatory regimes under the National Supplementary Health Agency (ANS). However, reality shows that many Medical Cooperatives operate as traditional businesses, entrepreneurial activities and face economic and financial crises. The article also highlights the relevance of the regulatory function of the ANS, which plays a crucial role in protecting health plan beneficiaries, especially in crisis situations. The issue of discussion lies in the inconsistency between the legal change that allows the judicial recovery of medical cooperatives that offer health plans and the existing regulatory system, as well as the specifically original Bankruptcy and Judicial Recovery Law. Therefore, the article emphasizes the need to find a balance between the application of judicial recovery to medical cooperatives and the protection of consumers in the supplementary health sector.

 

Keywords: judicial recovery; medical cooperatives; social function of the company; National Supplementary Health Agency; regulatory balance.

 

  

SUMÁRIO

 

1 INTRODUÇÃO 6

2 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS, DEFINIÇÃO LEGAL E NATUREZA JURÍDICA DAS SOCIEDADES COOPERATIVAS 8

2.1 Aspectos introdutórios concernentes às cooperativas 8

2.2 Definição geral de cooperativas e implicações sutis à fruição do instituto da recuperação judicial 9

2.3 Natureza jurídica das sociedades cooperativas 9

3 DO REGIME DE DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO APLICÁVEL ÀS COOPERATIVAS MÉDICAS 12

4 O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL ANALISADO SOB O PRISMA DAS COOPERATIVAS MÉDICAS 15

4.1 A recuperação judicial e seus legitimados tradicionais 15

4.2 A reforma da lei 11.101/2005 e a extensão da recuperação judicial às cooperativas médicas 15

5 CASOS CONCRETOS DE UTILIZAÇÃO DO INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL POR COOPERATIVAS MÉDICAS 19

5.1 Análise da recuperação judicial em juízo da Unimed Norte/Nordeste 19

5.2 Análise da recuperação judicial em juízo da Unimed Manaus 20

5.3 Análise da recuperação judicial em juízo da Unimed Petrópolis 22

6 CONSIDERAÇÕES AFETAS À JURISPRUDÊNCIA CORRELACIONADA AO CASO 25

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 27

   REFERÊNCIAS 29

 

  • INTRODUÇÃO

 

O empreendedorismo é um motor essencial para o crescimento econômico, para a inovação e para a geração de empregos em sociedades contemporâneas. Os agentes econômicos, especialmente os empresários (seja individual ou em sociedade), desempenham um papel vital na economia, uma vez que suas atividades impulsionam o desenvolvimento de novos produtos, serviços e mercados.

Contudo, a natureza dinâmica do empreendedorismo não é isenta de desafios. Neste sentido, os personagens econômicos assumem riscos inerentes à sua atividade, os quais podem desencadear crises das mais variadas características e proporções, que, por sua vez, podem eclodir por uma série de fatores, sejam eles internos, como má gestão ou falta de inovação, ou externos, como mudanças no mercado ou eventos imprevisíveis, como guerras, pandemias ou catástrofes naturais.

Ademais, as crises enfrentadas por tais personagens podem, ainda, ser classificadas em diferente tipos[1], como econômicas, quando há um descompasso entre ganhos e gastos resultantes da prática da atividade; financeiras, quando há uma descompasso entre o período médio de recebimento e o período médio para liquidar os pagamentos; e patrimonial, quando o patrimônio líquido do agente econômico se apresenta deficitário, situação em que o passivo exigível excede o ativo disponível.

Além disso, as crises podem variar de graus moderados a irreversíveis. Sob esta ótica, uma crise moderada pode ser superada com ajustes na gestão, enquanto uma crise grave pode exigir reestruturação financeira, ao passo que crises gravíssimas, reversíveis ou irreversíveis, podem levar a falência e a liquidação do patrimônio para o pagamento das obrigações.

Assim, considerando que as cooperativas médicas funcionam como agentes econômicos intermediando serviços de saúde aos beneficiários, estão, também, sujeitas às mesmas crises econômicas, financeiras e patrimoniais que outras entidades empresariais.

Em decorrência disso, é notável a importância de institutos de recuperação que garantam a sobrevivência das cooperativas médicas, uma vez que são imprescindíveis no contexto do sistema de saúde brasileiro, na medida em que são responsáveis pela saúde suplementar de 19,7 milhões de pessoas, movimentando 91 bilhões de reais e gerando, diretamente, 136 mil empregos, conforme dados do Anuário do Cooperativismo Brasileiro de 2022[2] realizado pela Organização das Cooperativas do Brasil (OCB).

Nesta toada, é imperioso analisar a natureza jurídica das cooperativas médicas, o sistema de insolvência que foi associado a elas ao longo da evolução legislativa e os artifícios contemporâneos de soerguimento aplicados às cooperativas médicas, em casos concretos, pelo Poder Judiciário brasileiro.

Portanto, é pertinente examinar a abordagem dada pelo sistema jurídico do país, particularmente considerando as Leis 10.406/2002 (Código Civil brasileiro), 11.101/2005 (lei de recuperações e falência), 5.764/1971 (lei das cooperativas), 9.656/1998 (lei dos planos de saúde) e a Resolução Normativa n° 316 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), e sob uma ótica integrada e coesa das normativas legais, além de analisar como a doutrina e a jurisprudência interpretam esta questão controversa.

  • ASPECTOS INTRODUTÓRIOS, DEFINIÇÃO LEGAL E NATUREZA JURÍDICA DAS SOCIEDADES COOPERATIVAS

 

2.1 Aspectos introdutórios concernentes às cooperativas

O cooperativismo teve origem na Inglaterra no século XIX, pautado nos princípios da livre adesão, da administração pelos cooperados, da aplicação de juros moderados e pela cooperação entre cooperativas, transmutando-se como uma alternativa à conjectura individalista do capitalismo da época.

No Brasil, o cooperativismo começou a ser regulamentado em 1903 pelo Decreto nº 979, o qual regulamentou, de maneira simples, os sindicatos de agricultores e as cooperativas. Com o passar dos anos, várias leis e decretos foram promulgados para tratar de temas específicos, como cooperativas habitacionais e de crédito. No entanto, o marco mais significativo do cooperativismo brasileiro foi a promulgação da Lei nº 5.764 em 1971, que estabeleceu o Estatuto Geral do Cooperativismo no país.

Constitucionalmente, nenhuma Carta Magna anterior à legislação  cooperativista abordou as sociedades cooperativas. A primeira Constituição a tratar desse tema foi a de 1988, porém o fez de maneira fragmentada, o que tornou a tarefa do intérprete dificultosa e não resultou em benefícios práticos imediatos que justificassem a inclusão deste tópico pelo legislador constitucional.

Ainda assim, como fruto da preocupação do legislador constitucional, pode-se mencionar o artigo 174, § 2º, da Constituição Federal, o qual demonstra inequivocamente a importância dada às cooperativas no contexto econômico do pais, senão vejamos:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

[…]

  • 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo[3].

Posteriormente, em 2002, o Código Civil reservou espaço, em alguns poucos artigos, para tratar sobre as cooperativas, o que trouxe desafios na aplicação das normas para essas organizações.

2.2 Definição geral de cooperativas e implicações sutis à fruição do instituto da recuperação judicial

 

Os elementos econômicos e legais altamente distintos das sociedades cooperativas têm representado um desafio para os doutrinadores na tarefa de estabelecer com exatidão uma definição para esse modelo de sociedade. A determinação, naturalmente, está sujeita às disposições legais de cada país. No contexto brasileiro, a legislação vigente caracteriza as cooperativas como “sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados”[4].

Além disso, o parágrafo único do art. 982 do Código Civil, classifica a sociedade cooperativa como sociedade simples[5], classificação que implicou efeitos negativos ao juízo de admissibilidade para conceder o instituto da recuperação judicial às cooperativas no geral e, consequentemente, às médicas

Ademais, embora a definição legal determine, de pronto, a impossibilidade das cooperativas se sujeitarem à falência, permaneceu silente no que diz respeito à possibilidade dessas sociedades usufruírem dos institutos de soerguimento.

Apesar das complicações em estabelecer uma definição precisa para a sociedade cooperativa, é inquestionável que sua finalidade, em última análise, consiste em conferir benefícios financeiros aos seus membros, operando como uma intermediária entre os associados e suas interações com o mercado.

2.3 Natureza jurídica das sociedades cooperativas

Antes da implementação do Código Civil de 2002, as empresas podiam ser categorizadas como comerciais ou civis, dependendo da sua natureza. Em grande parte, a decisão sobre a classificação entre uma ou outra categoria estava relacionada com o fato de que o objetivo da empresa estava sujeito à legislação comercial ou civil.

A sociedade cooperativa, embora possa ter como escopo a atividade de caráter inerentemente comercial, é estabelecida com o propósito de prestar serviços aos seus associados, conforme estipulado pela legislação que a rege (conforme o artigo 4 da Lei no 5.764/71 supramencionado). Diante dessa dualidade de características, foi incumbência do legislador assumir uma posição quanto à sua essência, o que ele fez de forma explícita ao defini-la como de natureza civil.

Ademais, o Código Civil, estabelecido pela Lei no 10.406/2002, categorizou as organizações como empresariais e não empresariais[6]. Conforme esse dispositivo legal, uma sociedade é considerada empresarial quando sua finalidade envolve a prática de atividades típicas de um empresário sujeito a registro; enquanto as demais são classificadas como sociedades não empresariais, vejamos:

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

De modo contrário, ainda no que diz respeito à natureza das sociedades cooperativas, surge frequentemente a questão de se esse tipo de sociedade pode ser classificado como uma empresa, considerando os seus conceitos econômicos e legais. A questão em análise não é de resolução simples, pois no âmbito jurídico, tem sido desafiador definir o termo “empresa” com a precisão necessária. O que tem sido feito, ainda que com hesitação, é a incorporação do conceito econômico de empresa para adaptá-lo ao domínio jurídico, que em resumo, pode ser tido como a “organização de trabalho e de capital, tendo como fim produzir ou fazer circular bens ou serviços.”[7]

Nesse contexto, é inegável que a cooperativa médica se alinha, pelo menos em termos econômicos, com a noção de “empresa”. No entanto, a necessidade de continuar a busca por uma definição mais precisa do termo “empresa” no âmbito jurídico é evidente e, por este motivo, afirmar de maneira absoluta que a sociedade cooperativa médica se enquadra no conceito de “empresa” parece ser uma conclusão precipitada, sobretudo porque, como adiantado alhures, o Código Civil dispõe de maneira enfática o não-enquadramento, conforme leciona Sacramone:

a consideração como empresarial ou simples independe da natureza da atividade exercida, no caso da cooperativa. Para essa, independentemente de seu objeto, o Código Civil determinou que a sociedade cooperativa será considerada sociedade simples, ou seja, não empresária[8]

No mesmo sentido, concorda Mamede, quando milita que

“não é juridicamente possível o pedido de recuperação judicial de atividades negociais conduzidas e titularizadas por trabalhador autônomo ou sociedade simples, incluindo a sociedade cooperativa”[9]

Pelo exposto, é notório que, antes das alterações legais de 2020 na Lei de Recuperações e Falências, a admissibilidade das cooperativas médicas como passíveis de recuperação judicial era complexa devido à ambiguidade de sua natureza, oscilando entre características econômicas empresariais e a definição jurídica de sociedade simples. A falta de clareza nesse aspecto tornava desafiador incluí-las no escopo da recuperação judicial, evidenciando a necessidade de uma definição mais precisa no contexto legal, o que, muito embora tenha sido parcialmente solucionado pela alteração contemporânea supramencionada, ainda apresenta controvérsias, conforme será demonstrado adiante.

  • DO REGIME DE DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO APLICÁVEL ÀS COOPERATIVAS MÉDICAS

Como mencionado anteriormente, no que diz respeito ao cenário de insolvência, as cooperativas não estão sujeitas à falência devido à sua classificação como sociedades não empresariais. Portanto, a legislação aplicável estabelece um procedimento específico de encerramento e liquidação destinado a cooperativas médicas, que, por força do princípio da especialidade, seguem o procedimento da Lei dos Planos de Saúde.

Sobre o assunto, a Lei n.º 9.656 de 1998, que regula os planos e seguros privados de assistência médica, estabelece a adoção de um procedimento de execução concursal de natureza extrajudicial. Isso impede a utilização da concordata e a aplicação de procedimentos de falência ou insolvência civil, com exceção dos casos explicitamente mencionados no §1º do artigo 23 do referido dispositivo, nos seguintes termos:

Art. 23.  As operadoras de planos privados de assistência à saúde não podem requerer concordata e não estão sujeitas a falência ou insolvência civil, mas tão-somente ao regime de liquidação extrajudicial.

  • 1o As operadoras sujeitar-se-ão ao regime de falência ou insolvência civil quando, no curso da liquidação extrajudicial, forem verificadas uma das seguintes hipóteses:

I – o ativo da massa liquidanda não for suficiente para o pagamento de pelo menos a metade dos créditos quirografários;

II – o ativo realizável da massa liquidanda não for suficiente, sequer, para o pagamento das despesas administrativas e operacionais inerentes ao regular processamento da liquidação extrajudicial; ou

III – nas hipóteses de fundados indícios de condutas previstas nos arts. 186 a 189 do Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho de 1945.[10]

As condições para a ativação desse regime especial no âmbito administrativo são claramente delineadas no texto legal, particularmente no artigo 24 da Lei n.º 9.656/1998, que confere à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) o poder de determinar a alienação da carteira, impor a direção fiscal ou técnica ou iniciar o processo de liquidação extrajudicial, vejamos:

Art. 24.  Sempre que detectadas nas operadoras sujeitas à disciplina desta Lei insuficiência das garantias do equilíbrio financeiro, anormalidades econômico-financeiras ou administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, a ANS poderá determinar a alienação da carteira, o regime de direção fiscal ou técnica, por prazo não superior a trezentos e sessenta e cinco dias, ou a liquidação extrajudicial, conforme a gravidade do caso.[11]

Por decorrência do dispositivo acima, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) possui a função de fiscalização e regula a matéria através das Resoluções Normativas n.º 316, de 30 de novembro de 2012, e n.º 401, de 25 de fevereiro de 2016, cujos dispositivos definem os procedimentos em caso de dificuldades financeiras das operadoras.

Um dos procedimentos estabelecidos é o regime especial de direção fiscal, o qual envolve a nomeação de um diretor fiscal pela ANS, cuja função é realizar auditorias nas contas da operadora, coletar documentos financeiros e contábeis, e gerar relatórios econômico-financeiros. Nesse processo, o objetivo é investigar a situação da operadora, identificando riscos financeiros e possíveis irregularidades na gestão dos recursos internos.

Por outro lado, a liquidação extrajudicial é um procedimento de dissolução forçada que ocorre quando existem anormalidades administrativas ou financeiras graves e irreversíveis que impossibilitam a continuidade da operadora. Diferentemente do regime de direção fiscal, a liquidação extrajudicial pode ser decretada sem a necessidade de implementar o regime especial. Desse modo, mostra-se com uma opção quando as anormalidades financeiras ou administrativas representam uma ameaça iminente à continuidade dos serviços de saúde, de acordo com o §1º do artigo 17 da RN n.º 316/2012, veja-se:

Art. 17. A liquidação extrajudicial da operadora poderá ser decretada pela ANS, quando verificada ao menos uma das seguintes situações:

[…]

  • 1º A liquidação extrajudicial da operadora poderá ser decretada independentemente de instauração do regime de direção fiscal sempre que a gravidade das anormalidades econômico-financeiras ou administrativas impliquem risco iminente à manutenção do atendimento à saúde.[12]

A ênfase dada pela agência reguladora à preservação do atendimento aos beneficiários de planos de saúde é notável. A regulamentação prevê que, antes de recorrer à liquidação extrajudicial, deve ser tentada a alienação da carteira de beneficiários da operadora ou garantida a portabilidade especial, como estipulado no artigo 18 da RN n.º 316/2012, abaixo examinado:

Art. 18. Havendo beneficiários ativos na operadora, a decretação da liquidação extrajudicial será precedida da alienação de sua carteira ou da portabilidade especial a esses beneficiários, na forma definida em resolução específica.[13]

Pelo exposto, é notório que essas medidas visam assegurar a continuidade do atendimento médico aos beneficiários, diferentemente das finalidades embutidas na recuperação judicial regulada pela Lei 11.101/2005, cujo objetivo

“é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”[14]

Nesse contexto, considerando que a preservação da empresa é o vetor fundamental da recuperação judicial “tradicional”, configura-se mais adequada, para os casos da cooperativas médicas em crises, os intitutos administrativos regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, posto que dispõe do conhecimento técnico necessário para atuar com a necessária diligência para a preservação dos direitos dos principais interessados, quais sejam, os beneficiários.

 

 

  • O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL ANALISADO SOB O PRISMA DAS COOPERATIVAS MÉDICAS

 

4.1 A recuperação judicial e seus legitimados tradicionais

A recuperação judicial, prevista nos Capítulos III e IV da Lei de Recuperação e Falências (LREF), desempenha um papel essencial no sistema legal brasileiro. Ela representa uma ferramenta jurídica voltada para a reabilitação de empresas que, embora economicamente viáveis, enfrentam crises de proporções significativas. Nesse contexto, a recuperação judicial permite que tais empresas busquem a reestruturação de suas finanças com a supervisão do Poder Judiciário, com o objetivo de evitar a liquidação forçada de seus ativos que ocorreria em um processo de falência. Dessa forma, esse mecanismo legal contribui para a preservação da continuidade das operações empresariais, protegendo os interesses de todas as partes envolvidas.

A utilização dos mecanismos de recuperação judicial requer que o devedor atenda a requisitos específicos, os quais estão dispostos no caput do artigo 48 e alíneas subsequentes da LREF, que resumidamente, são: a) ser devedor; b) ser empresário; c) estar em situação de regularidade; d) não ser falido; e) não ter obtido o mesmo benefício há menos de cinco anos; f) não ter sido condenado por crime previsto na LREF; e g) não ter controlador ou admistrador condenado por crime previsto na LREF[15].

Estes pressupostos estabelecem as bases para a aplicação efetiva desse instrumento legal. Portanto, é imperativo que o devedor esteja em conformidade com essas condições a fim de aproveitar os benefícios da recuperação judicial, posto que cumprir esses requisitos é fundamental para garantir um processo dentro da legalidade.

4.2 A reforma da lei 11.101/2005 e a extensão da recuperação judicial às cooperativas médicas

A Lei nº 14.112/2020 introduziu uma mudança importante, embora confusa, na Lei n.º 11.101/2005, ao possibilitar que as cooperativas médicas envolvidas na prestação de serviços de planos de saúde recorram à falência, recuperação judicial e recuperação extrajudicial. Este é o teor do § 13, do artigo 6º, da LREF, senão vejamos:

  • 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.

O inciso II do art. 2º que se refere o parágrafo, por sua vez, elenca sociedades que não submetidas à aplicação da LREF, demostrando que a intenção do legislador foi, mesmo, excepcionar as cooperativas médicas.

Contudo, a peculiaridade é que a modificação pareceu restringir essa permissão às cooperativas médicas, sem uma justificativa aparente para esse foco específico. A justificativa para a aprovação da Emenda 13 ao PL 6.229, que inseriu essa alteração, estava principalmente na peculiaridade das operações realizadas no âmbito das cooperativas e em sua importância para o desenvolvimento econômico do país.

A redação do dispositivo acima foi objeto de diversas críticas, uma vez que incluiu duas disposições distintas, aparentemente sem conexão direta. Sobre o assunto, Sacramone opina que “a despeito da inserção do advérbio “consequentemente” no dispositivo legal, a inserção não possui qualquer relação lógica com o restante do parágrafo.”[16]

A inserção a que se refere traduz justamente “a determinação de que a vedação às cooperativas contida no art. 2º, II, não afetaria a sociedade operadora de plano de assistência à saúde se fosse cooperativa médica.”[17]

Ademais, do ponto de vista substancial, Ruy Pereira Camilo Junior[18] levanta uma questão sobre a inconstitucionalidade da norma, argumentando que ela viola o princípio da igualdade ao diferenciar as empresas operadoras de planos de saúde, permitindo a recuperação judicial apenas para cooperativas. Isso, segundo ele, cria desigualdades no mercado e favorece significativamente as cooperativas médicas em relação a outras empresas do mesmo setor.

Adicionalmente, Fábio Ulhoa[19], argumenta que, com base na atual legislação brasileira, nenhuma cooperativa, incluindo aquelas formadas por médicos para operar planos de saúde, tem direito à recuperação judicial.

No que diz respeito à aplicabilidade do dispositivo, os doutrinadores discordam de opinião. Para alguns, apesar das controvérsias e questionamentos sobre a constitucionalidade do dispositivo, as cooperativas médicas podem utilizar os mecanismos previstos na Lei n.º 11.101/2005 enquanto sua inconstitucionalidade não for declarada. Para outros,

o dispositivo apenas ressalta a não aplicação às cooperativas prestadoras de assistência à saúde do art. 2º, II, o qual veda a determinados empresários o requerimento de recuperação judicial.  Pela redação do próprio dispositivo legal, a cooperativa médica continua, portanto, a não se sujeitar à recuperação judicial ou à falência pois não é considerada empresária, condição imprescindível para a submissão aos institutos da recuperação de empresas e falência, nos termos do art. 1º da Lei n. 11.101/2005.[20]

Ademais, a inclusão do referido dispositivo é considerada inconstitucional por não seguir o processo legislativo correto para a sua aprovação, posto que a  inclusão no texto legislativo foi irregular e contrária aos procedimentos do processo legislativo. De acordo com os princípios do processo legislativo, qualquer adição ou modificação substancial em um projeto de lei aprovado por uma das Casas do Congresso deve ser tratada como emenda aditiva, retornando à Câmara dos Deputados para avaliação e votação.

Para dirimir a questão, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, propôs ação direta de inconstitucionalidade nº 7442, onde argumenta que as circunstâncias de tramitação do projeto de lei viola o princípio constitucional do bicameralismo.

Agora, cabe ao Supremo Tribunal Federal analisar essa ação e determinar se a inclusão da exceção para as cooperativas médicas na Lei de Falências e Recuperação Judicial foi ou não inconstitucional.

  • CASOS CONCRETOS DE UTILIZAÇÃO DO INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL POR COOPERATIVAS MÉDICAS

 

5.1 Análise da recuperação judicial em juízo da Unimed Norte/Nordeste

No caso em comento, foi concedida tutela provisória de urgência, solicitada pela parte autora, a fim de garantir a eficácia do processo de recuperação, incluindo três medidas fundamentais: 1) a restrição à venda da carteira da operadora de saúde, visando impedir a venda da carteira de clientes da operadora de saúde, bem como a sua liquidação ou transferência extraordinária, a menos que houvesse autorização judicial prévia. Desse modo, buscou preservar os interesses dos beneficiários e garantir que quaisquer mudanças em sua situação sejam devidamente avaliadas pelo judiciário, evitando decisões unilaterais que poderiam afetar negativamente os pacientes; 2) o atendimento a beneficiários no modo de intercâmbio, o que impôs à Central Nacional Unimed e à Unimed do Brasil a obrigação de não criar obstáculos ou impedimentos ao atendimento de beneficiários no sistema de intercâmbio, o que significa que os beneficiários que fazem uso desse sistema não devem enfrentar dificuldades no acesso aos serviços de saúde oferecidos pelas cooperativas médicas parceiras; e 3) a garantia de pagamento de serviços prestados no sistema de intercâmbio, o que garantiu que os valores devidos pelos serviços prestados aos beneficiários no sistema de intercâmbio fossem devidamente assegurados. Para isso, determinou-se que esses valores fossem depositados integral e mensalmente nos autos do processo. Tal medida assegurou que os prestadores de serviços médicos recebessem de forma regular pelos serviços prestados, contribuindo para a estabilidade e funcionamento adequado do sistema de saúde.[21]

Essas determinações judiciais demonstraram que é factível aplicar a recuperação judicial às cooperativas médicas, garantindo a segurança necessária que os procedimento administrativo da ANS promove.

Para fundamentar suas decisões, o juiz responsável pelo julgamento da causa e pela admissão da recuperação judicial ao caso concreto, argumentou que

Antes da Reforma do sistema de insolvência, implementada pela Lei 14.112/2020, poder-se-ia até cogitar da impossibilidade de cooperativas médicas valerem-se do mecanismo da recuperação judicial para reorganizarem suas atividades e superarem eventual cenário de crise, mas isso não mais remanesce. Como bem salientado pela Requerente na petição inicial, o Art. 6º, §13 da LRE expressamente concede às cooperativas médicas a possibilidade jurídica de pedirem recuperação judicial, senão vejamos:

Art. 6. (omissis)

  • 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedadeoperadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.

A Lei é verdadeiramente clara. Após a reforma, não há qualquer dúvida sobre a possibilidade de se deferir a recuperação judicial às sociedades cooperativas médicas operadora de plano de saúde que estejam em crise.

Sem prejuízo da literalidade legal, que bem resolve o imbróglio, não é despiciendo falar sobre a natureza da Requerente, que, à luz do que se pôde concluir a partir da análise do pedido recuperatório, é verdadeiramente empresária, legitimando a aplicação do Art. 966 do Código Civil e da Lei 11.101/2005.

[…]

Não há razão para se fazer distinções. A atividade exercida pela sociedade deve se sobrepor à formalidade do registro ou da espécie societária eleita, até mesmo porque é a atividade desenvolvida que irá definir propriamente se está-se tratando de sociedade simples ou empresária. Não é o registro na junta comercial que torna alguém empresário – sua natureza é declaratória e não constitutiva – mas o fato de exercer a atividade com elementos de empresa, isto é, com organização dos fatores de produção em torno do objeto social visando a obtenção de lucro. Trata-se, aqui, de mera aplicação do princípio da primazia da realidade.[22]

Percebe-se que, muito embora o dispositivo legal adicionado pela reforma seja controverso, ele fora utilizado com fundamentação em caso concreto de recuperação judicial de cooperativa médica, permitindo que o processo tramitasse e que os atos judiciais anteriormente detalhados

 

5.2 Análise da recuperação judicial em juízo da Unimed Manaus

Outro emblemático caso foi o da Unimed Manaus, o qual foi um claro exemplo das complexidades enfrentadas no cenário cooperativista contemporâneo. A cooperativa, enfrentando situação financeira delicada, optou por buscar a recuperação judicial como meio de salvaguardar sua existência e manter o acesso da população do Amazonas a cuidados médicos essenciais.

O pedido de recuperação judicial da Unimed Manaus não se deu de forma isolada, mas sim em conjunto com a Unimed de Manaus Empreendimentos S/A, ambas fazendo parte do Grupo “Unimed Manaus”. A conexão intrínseca entre os ativos e passivos dessas entidades justificou o processamento conjunto, uma vez que o colapso financeiro de uma poderia arrastar a outra na mesma direção.

Como argumentos, a recuperanda suscitou a relevância social e o impacto econômico da Unimed Manaus, os quais não poderiam ser subestimados, posto que desempenhava um papel vital na prestação de serviços de saúde à população regional.

Embora a Unimed Manaus tenha enfrentado uma série de desafios, desde prejuízos financeiros recorrentes até bloqueios judiciais em suas contas, a capacidade de recuperação foi sustentada por demonstrações contábeis sólidas e documentação convincente. A decisão do Juízo da 16ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus/AM de deferir o pedido de recuperação judicial foi baseada na compreensão da importância econômica e social da cooperativa e na necessidade de manter a prestação de serviços essenciais à população, especialmente em tempos de crise como a pandemia, como era o caso na época. Vejamos o teor da fundamentação do juízo:

a mera formalidade do momento da constituição das pessoas jurídicas que ora buscam o regime de recuperação judicial não podem ter o condão de obstaculizar, por si só, o efetivo acesso ao provimento jurisdicional pretendido. O preciosismo interpretativo não é capaz de obstaculizar o soerguimento de uma companhia que gera mais de 600 empregos diretos e presta serviço essencialmente relevante ao povo amazonense.

O Código Civil caracteriza no art. 966 a atividade empresária a qual, claramente, a requerente se enquadra. O não deferimento acarretaria o agravamento de um Grupo Médico que tem enfrentado sérios problemas por conta da destacada crise econômico-financeira que vem enfrentando há tempos, reverberando ainda nas ações promovidas por outros agentes do Sistema Unimed em trâmite neste mesmo juízo. Ainda que com esse contexto, conforme se vê na projeção de caixa e nos demais documentos juntados pela requerente, o Grupo Unimed tem conseguido apresentar sinais destacados de melhoramento o que torna possível, cabível e razoável o pedido de recuperação judicial, em teleológica análise do caso concreto.

[…]

Ressalto que o prosseguimento da atividade empresarial das requerentes é essencial para continuidade de serviços de saúde necessários à população do Estado do Amazonas, especialmente, neste momento delicado que vivemos, a pandemia.

[…]

Portanto, é plausível verificar que, diante deste cenário, além da importância da continuidade dos serviços da recuperanda pela sua sobrevivência (recuperação judicial) na sua atividade econômica, deve, também, prevalecer aproteção e preservação do interesse da coletividade com a prestação de seus serviços.[23]

Essa decisão enfatiza o conceito atual da evolução da teoria do agente econômico, que valoriza o impacto das empresas na comunidade e na economia, independentemente de quando foram formalmente constituídas. O papel das empresas na geração de empregos e na prestação de serviços essenciais torna-se um fator preponderante nas decisões judiciais, com o objetivo de proteger tanto os interesses das empresas quanto o bem-estar da comunidade.

Além disso, a suspensão das execuções movidas por cooperados contra as Recuperandas representou um passo importante para aliviar a pressão financeira e permitir a reestruturação da empresa

Em resumo, o caso da Unimed Manaus é um exemplo que destacou, de certa forma, a importância da recuperação judicial como uma ferramenta para preservar a atividade econômica da cooperativa médica viável e a continuidade dos serviços essenciais por ela prestado.

5.3 Análise da recuperação judicial em juízo da Unimed Petrópolis

A história da recuperação judicial da Unimed Petrópolis/RJ e o precedente estabelecido pelo juízo da vara cível de Petrópolis são exemplos clarividentes da complexidade concernentes às questões legais que envolvem as cooperativas, em particular, as operadoras de planos de saúde. Nesse caso, o magistrado destacou uma realidade que muitas cooperativas enfrentam: a transição de uma entidade originalmente voltada para a cooperação entre profissionais de saúde para uma que, na prática, executa atividades nitidamente empresariais. Vejamos a fundamentação:

as Cooperativas Operadoras de Planos de Saúde têm formato híbrido na medida em que os destinatários de suas atividades são pessoas distintas, quais sejam: de um lado, os cooperativados, via de regra profissionais da medicina e efetivos prestadores do serviço oferecido pelo plano de saúde e, de outro lado, os usuários contratantes do serviço. […] entendo que Unimed Petrópolis Cooperativa de Trabalho Médico não mais se adequa à definição e propósitos primevos da espécie “cooperativa” porquanto a interrelação e a conexidade com plúrimos segmentos negociais que estão indissociavelmente imbricados para a efetividade de sua atividade-fim, deslocam-na para um fato consumado porque observamos que ocorre uma espécie de transmutação metafísica para a categoria de “atividade empresária” na qual adquirem relevo sua função social […] Exatamente porque Unimed Petrópolis Cooperativa de Trabalho Médicoostenta essas peculiaridades tanto em sua atividade-meio, quanto em sua vitoriosa (no espectro social) atividade-fim, estou convencido de que inexistequalquer óbice à submetê-la, sem restrição, ao regramento da Lei 11101/05,instrumento legal que reúne todos os meios e modos que lhe permitirão afastar os transtornos, encontrar a solução para os problemas que lhe afligem e retomar o prestígio sócio-econômico […][24]

A argumentação do juiz de que a Unimed Petrópolis não mais se enquadrava na definição clássica de cooperativa, devido à sua interligação com vários segmentos de negócios e sua função social em atender a comunidade, serviu de base para a concessão do pedido de recuperação judicial. Esse enfoque na preservação da atividade econômica e no bem-estar da comunidade é um princípio subjacente ao instituto da recuperação judicial, como estabelecido na Lei 11.101/05.

Esse precedente destaca a importância da função econômica e social dessas organizações e reconhece que, em muitos casos, elas desempenham papéis cruciais na criação de empregos, geração de renda, pagamento de tributos e fornecimento de benefícios econômicos e sociais à comunidade.

No cerne desses argumentos e decisões judiciais está o entendimento de que, para preservar o interesse público e a estabilidade econômica, é fundamental permitir que entidades que desempenham um papel essencial na sociedade continuem suas operaçõe, visto que o encerramento dessas atividades poderia resultar em perdas significativas para todos os envolvidos, principalmente para os consumidores que dependem dos serviços prestados pelas cooperativas médicas

Em resumo, os caso concretos apresentados acima destacam a evolução da jurisprudência e a sensibilidade do sistema legal para as mudanças nas atividades econômicas e nas necessidades da sociedade. Eles demonstram a importância de adaptar o direito empresarial e de recuperação judicial para acomodar as cooperativas médicas.

  • CONSIDERAÇÕES AFETAS À JURISPRUDÊNCIA CORRELACIONADA AO CASO

A dinâmica da jurisprudência reflete uma tendência notável de expansão dos atores legitimados a buscar o amparo da recuperação judicial, sobretudo quando a crise afeta organizações envolvidas na atividade econômica, e mais ainda quando essa crise tem um impacto substancial no âmbito econômico e social.

Essa abordagem mais ampla e inclusiva demonstra uma evolução na interpretação das leis de recuperação judicial. Tradicionalmente, a recuperação judicial era considerada um instrumento reservado a empresas constituídas sob a forma de sociedades empresárias, com fins lucrativos. No entanto, o entendimento jurídico moderno reconhece que a complexidade das atividades econômicas e o impacto social inerente a muitas organizações vão além da estrutura tradicional de sociedade empresária.

O crescente reconhecimento da relevância das entidades sem fins lucrativos e das associações civis na promoção do bem-estar social e econômico tem levado os tribunais a expandir o escopo da recuperação judicial. Entidades que, embora não distribuam lucro entre seus membros, desempenham um papel crucial na geração de empregos, na produção ou circulação de bens e serviços, no pagamento de tributos e no fornecimento de benefícios econômicos e sociais são consideradas como potencialmente elegíveis para a recuperação judicial.

Essa tendência reflete a compreensão de que, em muitos casos, o encerramento dessas organizações poderia ter efeitos prejudiciais não apenas para os envolvidos diretamente, mas também para a comunidade em geral. A proteção da fonte produtiva, a manutenção dos empregos, a geração de renda, o pagamento de tributos e os benefícios econômicos e sociais que derivam dessas atividades são considerados como valores dignos de proteção e, portanto, justificam a extensão do acesso à recuperação judicial.

Em resumo, a tendência ampliativa da jurisprudência em relação aos legitimados para buscar a recuperação judicial reflete a necessidade de adaptar o sistema legal às complexidades da economia e às mudanças na estrutura das organizações. Essa abordagem reconhece que o impacto econômico e social das atividades empresariais vai muito além das fronteiras tradicionais, e o direito deve evoluir para garantir a continuidade de organizações que desempenham um papel significativo na sociedade.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao ponderar sobre o instituto da Recuperação Judicial, é evidente que sua finalidade essencial é auxiliar as empresas na superação de crises, em consonância com os princípios constitucionais, com destaque para a função social da empresa e a preservação da atividade econômica. No entanto, essa abordagem também revela a necessidade de equilibrar os interesses das empresas em dificuldades e a preservação do sistema regulatório e da proteção dos consumidores, especialmente em setores sensíveis, como o de planos de saúde.

É verdade que a legislação estabeleceu critérios específicos para a recuperação judicial, excluindo certos tipos societários, como as Operadoras de Planos de Saúde, que estão sujeitas a regimes regulatórios especiais, como a Direção Fiscal e a Liquidação Extrajudicial, sob a supervisão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Essa abordagem é reflexo da complexidade do setor de Saúde Suplementar e da importância da proteção dos beneficiários.

No entanto, a realidade mostra que muitas Cooperativas Médicas operam como verdadeiras empresas, realizando atividades empresariais e enfrentando crises financeiras. Nesse contexto, o Congresso Nacional aprovou uma alteração na Lei 11.101/05 para estender o regime de falência e recuperação judicial a Operadoras de Planos de Saúde com natureza jurídica de Cooperativa Médica. Isso visa a acomodar as peculiaridades das cooperativas que oferecem planos de saúde e reconhece sua transformação em entidades empresariais.

Por outro lado, a atividade regulatória e fiscalizadora da ANS desempenha um papel vital na proteção dos beneficiários de planos de saúde. Isso inclui a garantia de que, em situações de crise econômico-financeira, a alienação de carteira seja cuidadosamente planejada para minimizar impactos no mercado e assegurar a continuidade do atendimento aos beneficiários, incluindo a Portabilidade Especial.

Assim, a alteração legal que possibilita a recuperação judicial para Cooperativas Médicas que oferecem planos de saúde gera uma certa incongruência com o sistema regulatório existente e a própria finalidade da Lei de Falências e Recuperação Judicial, que inicialmente se destinava a sociedades de natureza empresarial. A aceitação da abertura do processo de recuperação judicial sem uma análise administrativa aprofundada pode, de fato, desequilibrar o setor de Saúde Suplementar e contrariar os princípios orientadores do modelo regulatório, que tem a proteção dos beneficiários como seu foco central.

Portanto, é fundamental encontrar um equilíbrio entre a aplicação da recuperação judicial a Cooperativas Médicas e a necessidade de preservar a estabilidade e a proteção dos consumidores no setor de Saúde Suplementar. Isso requer uma análise minuciosa e colaborativa entre as entidades reguladoras, o Judiciário e as próprias cooperativas, a fim de garantir que a solução adotada seja equitativa e beneficie a todos os envolvidos.

REFERÊNCIAS

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[1] SCALZILLI, João P.; SPINELLI, Luis F.; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência: Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Grupo Almedina (Portugal), 2023. E-book. ISBN 9786556277950. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556277950/. Acesso em: 8 out. 2023.

[2] ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DO BRASIL. Anuário do cooperativismo brasileiro. Brasília, 2022. Disponível em: https://anuario.coop.br/ramos/saude/. Acesso em: 8 out. 2023.

[3] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em: 8 out. 2023.

[4] BRASIL. Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1971. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5764.htm Acesso em: 8 out. 2023.

[5] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2002. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em: 8 out. 2023.

[6] BRASIL, 2002

[7] SACRAMONE, Marcelo B. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553626256. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553626256/. Acesso em: 8 out. 2023.

[8] SACRAMONE, 2023.

[9] MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro: Falência e Recuperação de Empresas. Barueri Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559771707. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559771707/. Acesso em: 8 out. 2023.

[10] BRASIL, 1998. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9656compilado.htm#:~:text=L9656compilado&text=LEI%20N%C2%BA%209.656%2C%20DE%203%20DE%20JUNHO%20DE%201998.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20os%20planos%20e%20seguros%20privados%20de%20assist%C3%AAncia%20%C3%A0%20sa%C3%BAde.&text=%C2%A7%205o%20%C3%89%20vedada,privado%20de%20assist%C3%AAncia%20%C3%A0%20sa%C3%BAde.  Acesso em: 8 out. 2023.

[11] BRASIL, 1998.

[12] BRASIL, 2012. Resolução normativa n° 316, de 30 de novembro 2012, da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dispõe sobre os regimes especiais de direção fiscal e de liquidação extrajudicial sobre as operadoras de planos de assistência à saúde. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2012. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ans/2012/res0316_30_11_2012.html> Acesso em: 8 out. 2023.

[13] BRASIL, 2012.

[14] SCALZILLI; SPINELLI; TELLECHEA, 2023.

[15] SCALZILLI; SPINELLI; TELLECHEA, 2023.

[16] SACRAMONE, Marcelo. Rejeição dos vetos presidenciais às alterações na lei 11.101/05 pelo Congresso Nacional. Migalhas, 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/342636/rejeicao-dos-vetos-presidenciais-as-alteracoes-na-lei-11 Acesso em: 8 out. 2023.

[17] Ibid.

[18] CAMILO JUNIOR, Ruy Pereira. Comentários aos artigos 1º a 6º. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. Acesso em: 8 out. 2023.

[19] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de falências e de recuperação de empresas [livro eletrônico]. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[20] SACRAMONE, 2023.

[21] PARAÍBA. Tribunal de Justiça, 2020. Processo n. 0812229-78.2020.8.15.2001. Juiz de Direito Romero Carneiro Feitosa, j. 03/03/2020

[22] PARAÍBA, 2020.

[23] AMAZONAS. Tribunal de Justiça. 16ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus/AM. Processo nº 0762451-34.2020.8.04.0001 – fl. 1736-1743.

[24] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça (Comarca de Petrópolis). Processo nº 0022156-21.2018.8.19.0042.

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