Sabino Henrique

Entre o cárcere e o círculo de paz: por que a Justiça Restaurativa ainda engatinha no Brasil

Apesar de resolução do CNJ e projetos em vários tribunais, o modelo brasileiro ainda é desigual, pouco avaliado e corre o risco de ser absorvido pela lógica punitiva tradicional.

A Justiça Restaurativa deixou de ser apenas um “experimento de vanguarda” para se transformar em política pública oficial no Judiciário brasileiro. Desde a edição da Resolução nº 225/2016, atualizada pela Resolução nº 592/2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definiu diretrizes, princípios e uma estrutura mínima para que tribunais implantem núcleos, grupos gestores e práticas restaurativas em todo o país.

Na teoria, o modelo brasileiro é ambicioso: propõe círculos restaurativos, mediação vítima-ofensor, círculos de paz em escolas, atuação no sistema socioeducativo, na violência doméstica e até na execução penal. Na prática, entretanto, o cenário ainda é marcado por forte desigualdade regional, dependência de “ilhas de excelência” e ausência de dados consistentes sobre reincidência, custo-benefício e impacto real na superlotação carcerária.

No direito comparado, o Brasil não está sozinho. Países como Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, Noruega, Inglaterra, Argentina, Colômbia, México e Coreia do Sul adotaram, em maior ou menor grau, programas de Justiça Restaurativa, sobretudo na área da infância e juventude. Em geral, os resultados internacionais apontam para três tendências: maior satisfação de vítimas e ofensores quando há encontro restaurativo, maior cumprimento de acordos de reparação e, em muitos casos, leve redução das taxas de reincidência em comparação com o modelo puramente retributivo.

A diferença é que, em vários desses países, a Justiça Restaurativa foi incorporada diretamente em leis formais e códigos de processo, especialmente na justiça juvenil. Na Nova Zelândia, por exemplo, as chamadas Family Group Conferences são o eixo central do sistema juvenil desde o final dos anos 1980. No Canadá, os círculos de cura e de sentença têm forte participação de comunidades indígenas, com protagonismo local e não apenas judicial. Já na Europa, diretivas da União Europeia e recomendações do Conselho da Europa criaram um piso comum de princípios, ainda que cada país module seus programas.

No Brasil, o movimento foi inverso: a base mais forte é uma política judiciária definida pelo CNJ, enquanto o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e o próprio ECA ainda não consagram um regime consistente de Justiça Restaurativa em matéria penal. O resultado é um modelo institucionalmente avançado, mas juridicamente periférico: está ao lado do sistema penal tradicional, e não dentro dele.

Outro ponto sensível é a governança. A Justiça Restaurativa brasileira é, em grande parte, judicial-centrada. Os núcleos são vinculados a tribunais, a formação de facilitadores costuma ser coordenada por magistrados e equipes técnicas, e a participação comunitária, embora presente, permanece sob tutela institucional. Isso alimenta a crítica de que a JR corre o risco de ser “cooptada” como mais um instrumento de gestão de processos, sem questionar a cultura do encarceramento em massa.

Há ainda um debate candente sobre o uso da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica e de gênero. Parte da doutrina feminista alerta para o perigo de revitimização, pressões para reconciliação e reprodução de assimetrias de poder em ambientes supostamente dialógicos. Nessas situações, a simples importação de técnicas restaurativas, sem protocolos específicos e salvaguardas rígidas, pode fazer mais mal do que bem.

Apesar de todos esses limites, a experiência brasileira já oferece sinais positivos: relatos de vítimas e ofensores que se sentiram realmente ouvidos, escolas que reduziram conflitos após a implantação de círculos de paz, projetos em varas da infância e da juventude que conseguiram construir respostas mais humanas para adolescentes em conflito com a lei.

O desafio agora é saber se o país terá coragem de dar o próximo passo: integrar a Justiça Restaurativa ao coração da legislação penal e processual, investir em avaliações empíricas sérias e reconhecer que, entre o cárcere e o círculo de paz, há mais do que uma técnica alternativa — há um novo modo de compreender o conflito, a responsabilidade e a reparação.

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