Estamos esvaziando a CLT, decisão após decisão?
Por – Caren Benevento*
A recente decisão do ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, ao afastar vínculo de emprego em um caso envolvendo a contratação de um profissional como pessoa jurídica, volta a colocar a pejotização no centro do debate jurídico e trabalhista no Brasil. Não se trata de um caso isolado — mas de mais um passo no fortalecimento de um modelo contratual que, aos poucos, tem ampliado suas fronteiras e tensionado os limites da Consolidação das Leis do Trabalho.
A decisão invoca precedentes importantes da própria Corte, como a ADPF 324 e o RE 958.252 (Tema 725 da repercussão geral), para
reconhecer a legitimidade da contratação por fora da CLT quando não houver elementos como subordinação, pessoalidade e habitualidade — ou seja, os requisitos clássicos do vínculo empregatício. Até aí, nenhuma surpresa. Mas o ponto de atenção está no critério que vem sendo adotado para validar essas contratações: a “ausência de vulnerabilidade”.
O problema é que essa vulnerabilidade nem sempre é visível — e quase nunca é simples de mensurar. A depender do contexto, a “livre escolha” por atuar como pessoa jurídica pode ser, na prática, uma imposição silenciosa. Pode surgir não como alternativa real, mas como única opção para acessar o mercado. Isso coloca o trabalhador diante de um dilema: aceitar as condições, ou abrir mão da oportunidade.
Nesse cenário, cabe uma pergunta incômoda: estamos criando um novo modelo de trabalho ou apenas flexibilizando tanto as regras que já não conseguimos mais garantir proteção mínima a quem trabalha?
A Constituição garante a liberdade de iniciativa, sim. Mas também garante a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho. O desafio está justamente em equilibrar esses princípios — sem fazer com que um anule o outro.
O STF tem reforçado, nas últimas decisões, uma visão mais empresarial da relação de trabalho. O contrato entre partes, desde que formalmente válido e sem vícios, tende a ser respeitado — mesmo quando a lógica da subordinação estiver ali, presente de forma estrutural e direta. E isso transforma não só a forma como contratamos, mas também como enxergamos o trabalho no Brasil.
A discussão sobre pejotização não pode ser apenas técnica. Ela exige análise de contexto, sensibilidade e coragem para enfrentar a desigualdade estrutural que ainda marca as relações laborais em muitos setores. É preciso reconhecer que o mundo do trabalho mudou — mas também é necessário garantir que, nessa mudança, direitos fundamentais não sejam colocados em segundo plano.
Não se trata de defender a CLT como algo imutável. Mas de não permitir que ela seja esvaziada pouco a pouco, decisão após decisão, até deixar de cumprir o papel para o qual foi criada: proteger o elo mais fraco da relação.
*Caren Benevento – Advogada com mais de 20 anos de experiência, é especializada em processos judiciais e negociações trabalhistas no setor bancário, além de gerenciamento de passivo judicial. Possui certificação pela International Association of Privacy Professionals (CIPM) e auxilia empresas na conformidade com a LGPD. É pesquisadora do Grupo de Estudos do Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (GETRAB-USP). Também possui especializações em Direito Empresarial pela FGV Direito SP, Proteção de Dados pela FMP, Negociações Empresariais pela FGV Direito SP, e Compliance Trabalhista pela FGV Direito SP, entre outras formações.