Golpismo no Brasil
Djalma Pinto
As palavras mais ouvidas, nas mídias brasileiras, são golpe, tentativa de golpe e ruptura do Estado Democrático de Direito. Nada mais oportuno, por isso, do que uma retrospectiva, na nossa história republicana, para saber como esse estigma se incorporou na nossa cultura e como extirpá-lo de uma vez por todas do nosso caminho na direção da prosperidade.
A República foi proclamada em 1889 pelo Marechal Deodoro. Após a promulgação da Constituição de 1891, tornou-se ele Presidente em eleição indireta. Logo tentou fechar o Congresso, sendo obrigado a renunciar ao mandato em 23/11/1891.
Em 1904, Políticos e militares tentaram derrubar o Presidente Rodrigues Alves. Para isso, usaram a população descontente com a sua determinação da vacinação obrigatória contra a febre amarela. Saldo da rebelião no centro do Rio de Janeiro, então capital federal: 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos, segundo o Centro Cultural do Ministério da Saúde.
1922, alegando fraude nas eleições vencidas por Artur Bernardes, militares se rebelaram no Forte de Copacabana. Dispararam canhões na direção das guarnições militares, que não aderiram ao movimento, para impedir a posse do Presidente eleito. Dezoito deles partiram pela Praia de Copacabana, com o propósito de tomar a sede do poder. No confronto com as tropas do governo, dezesseis foram mortos. Apenas sobreviveram Eduardo Gomes e Siqueira Campos, presos imediatamente. O então primeiro-tenente Artur da Costa e Silva foi preso por se recusar a reprimir os rebeldes.
1923, Assis Brasil denunciou fraude na eleição para Presidente do Rio Grande do Sul (correspondente hoje ao cargo de governador) realizada em 1922, em que Borges de Medeiros foi eleito pela quinta vez. Cerca de mil pessoas perderam a vida.
1924, na Revolução Paulista, os tenentes revoltosos conseguiram tomar São Paulo para destituir do poder o Presidente Artur Bernardes. Cercados, na madrugada de 27 de julho daquele ano, os rebeldes abandonaram a cidade, deslocando-se para o Sul. Ali, se encontraram com os outros militares amotinados, que vieram a formar a “Coluna Prestes”, que se encerrou com seus líderes exilados na Bolívia.
1930, Getúlio Vargas deu um golpe de estado. Assumiu o poder, após a destituição e prisão do Presidente Washington Luís. Motivo dessa insurreição: alegação de fraude nas eleições daquele ano, impedindo a posse do candidato eleito Júlio Prestes. Assis Brasil, aliado de Getúlio, reconheceu a dificuldade de comprovação das fraudes, justificando: “os que a praticam não lavram termo nem deixam os seus bilhetes de visitas”. O golpe contou com o auxílio dos tenentes revoltosos da década de 20.
- São Paulo se insurge contra a ditadura de Getúlio, iniciando a Revolução Constitucionalista, com mais de 2.000 mortes. Os revoltosos exigiam o restabelecimento da democracia com a elaboração de nova constituição.
- Os tenentes de 1930, tornados generais, com apoio de civis e da imprensa, destituíram o Presidente João Goulart. Investidos no poder, cassaram colaboradores do golpe, entre os quais Carlos Lacerda. Prenderem, mataram e torturam inimigos. Impediram eleições diretas, permanecendo por mais de 20 anos no poder até entregá-lo a José Sarney, em 15 de março de 1985.
- Inconformados com o resultado das eleições de 2022, notadamente pela não exibição do comprovante impresso do voto, determinada por diversas leis, eleitores dirigiram-se à frente dos quartéis. Pediam a decretação da GLO, prevista no art. 142 da Constituição vigente, postulação essa corretamente rejeitada pela cúpula das Forças Armadas. Em 8 de janeiro de 2023, uma multidão invadiu a sede dos três poderes, promovendo um espetáculo dantesco de selvageria. Muitos já foram condenados por atentado contra o Estado Democrático de Direito.
Como ensinou Aristóteles, “não conhecemos o verdadeiro se ignoramos a causa”. A causa da selvageria abominável, que destruiu prédios públicos e motivou a condenação de muitos por ameaça à democracia, reside na divergência entre o Poder Legislativo e o STF. Na condição de delegados do povo, o soberano do poder, o Parlamento já editou quatro leis, nos anos de 95, 2002, 2009 e 2015, determinando a exibição do comprovante impresso do voto nas eleições. A Suprema Corte, porém, resiste em cumprir essa determinação do Legislativo. Nessa divergência, em última análise, a raiz da crise, decorrente da forma de votação e apuração dos votos, na polarizada sociedade contemporânea.
A interpretação histórica, de grande utilidade na aplicação do Direito, permite constatar que a Lei 9.100, de 29/09/1995, que introduziu o voto eletrônico no Brasil, determinava, no seu art. 18, § 7º, a impressão do voto “para efeito de recontagem”. A particularidade relevante é que essa lei teve a minuta do seu anteprojeto redigida pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral. Para tanto, respaldou-se o TSE no posicionamento dos próprios criadores da urna eletrônica. Essa relevante informação é prestada pelo então Secretário de Informática daquela Corte, o conceituado Físico Paulo César Bhering Camarão, “o pai técnico” da máquina de votar, no seu livro “O Voto Informatizado: Legitimidade Democrática, às fls. 72-3.
Djalma Pinto é pós-graduado em Responsabilidade Social Empresarial e em Direitos Humanos, Governabilidade e Cultura da Paz pela Universidad de Castilla-La Mancha, Mestre em Ciência Política. Autor, entre outros, dos seguintes livros: Distorções do Poder, Inovações na Lei Eleitoral e a Ilusão da Ficha Limpa, O Direito e o comprovante impresso do voto.