A cada 7 minutos um simples Zé Eduardo se torna um juiz Edward Albert Lancelot Dodd
Por Alexandre Pegoraro (*)
O caso do juiz José Eduardo Franco dos Reis que veio a público recentemente por ter vivido por 40 anos com o nome falso de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield possui tantas camadas que é preciso escolher os ângulos mais relevantes para sua abordagem no contexto do sistema de identificação de pessoas no Brasil. Neste sentido, sem dúvida, a contradição existente no fato de um operador da justiça ter vivido todo este tempo na base de um golpe de falsificação de documentos pode ser considerado o maior dos escândalos, mas aprofundando areflexão se percebe que o tema é ainda mais grave.
Isto fica claramente demonstrado quando, ainda na condição falsa do personagem Edward, por meio do qual construiu sua carreira, ao analisar um caso o juiz em questão teria sentenciado: – “É notória a facilidade de fraudar o documento de identidade”.
Certamente, ao proferir tal fala, ele deveria estar com o seu próprio caso em mente, porém sua frase se aplica facilmente ao contexto macro do modelo de identificação nacional. Afinal, segundo um estudo divulgado pela Serasa no ano passado, uma tentativa de fraude de documento é registrada no Brasil a cada sete minutos.
Para chegar a esta constatação, a empresa analisou os períodos entre abril de 2023 a fevereiro de 2024 e registrou um total de 3,2 milhões de transações fraudulentas identificadas. Numa amostragem de 104,3 milhões de transações, os responsáveis pelo estudo encontraram 3% com tentativas de golpesutilizando Registros Gerais (RGs) e Carteira Nacional de Habilitação (CNH) falsos (3.284.176).
A maior incidência de golpes surgiu na forma da adulteração de documentos verdadeiros com sobreposição de foto de forma manual ou usando Inteligência Artificial (IA) para se aproximar da imagem real. A outra forma mais utilizada foi a montagem de documentos falsos, já com a foto do golpista, mas com informações verídicas de alguma vítima (nome, CPF, data de nascimento, filiação etc.).
De que maneira uma empresa de concessão de crédito, por exemplo, pode operar com tranquilidade no seu mercado, oferecendo seu produto diante de uma possibilidade tão grande de achar que está negociando com o Edward Albert Lancelot Dodd, quando na verdade o responsável por honrar o contrato é o José Eduardo?
E como saber se quem está à sua frente no balcão de negociações é o Zé Eduardo ou o Edward Albert, considerando a necessidade de investigar os milhões de clientes com os quais essas empresas interagem todos os dias?
Diante deste quadro, somente a tecnologia pode auxiliar tanto na investigação quanto na criação de obstáculos para a realização da falsificação.
No âmbito da investigação, merece destaque o trabalho das chamadas legaltechs. São empresas de tecnologia que usam inteligência artificial, aprendizado de máquina (machine learning e deep learning) e automação para realizar pesquisas em mais de 3.500 fontes nacionais e internacionais para avaliar a idoneidade de pessoas e empresas.
Em questão de minutos elas conseguem emitir análises detalhadas, incluindo score e avaliação de crédito, riscos reputacionais, informações de processos judiciais de tribunais, busca de bens, dados cadastrais, registros de óbito e classificação CNAE, além de monitoramento de Pessoas Politicamente Expostas e listas restritivas entre outras possibilidades.
Já entre os esforços que têm sido feitos para dificultar a falsificação, o maior destaque é a evolução da nova Carteira de Identidade Nacional
(CIN), apelidada de RG Digital que em fevereiro deste ano superou a marca de 20 milhões emitidas por brasileiros desde seu lançamento em julho de 2022 pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).
Neste caso, a meta do governo federal é ter cerca de 130 milhões de emissões até o fim de 2026. Ela é válida em todo o território nacional e substituirá o antigo Registro Geral (RG) que permanecerá válido até 2032.
Entre os avanços deste instrumento reside o uso de um padrão nacional, com o número do CPF como identificador único, válido em todo o país, ao contrário da antiga fórmula que permitia a emissão de um RG em cada Estado possibilitando aos fraudadores ter até 27 números de documento de identidade válidas diferentes. Outra inovação importante é a aplicação do QR Code na parte de trás da carteira digital, que funciona como mais um elemento de segurança para permitir a verificação da autenticidade.
Seja como for, o mínimo que se espera de um país com um ambiente saudável de negócios é que as partes envolvidas tenham a certeza de que estão negociando com quem acham que estão. Enquanto os José’s Eduardos continuarem se passando pelo juiz Edwards Alberts, o Brasil não estará fazendo o básico.
Principalmente se os falsificadores ocuparem cadeiras de juizes e, portanto, tiverem o poder de decidir o futuro das pessoas.
(*) Alexandre Pegoraro é CEO do Kronoos, plataforma que usa IA para realizar pesquisas em milhares de fontes para conferir a idoneidade de pessoas e empresas