Reprodução assistida e herança: Congresso discute projeto que pode impactar sucessões
“A nova legislação pode reduzir conflitos entre herdeiros e fortalecer valores constitucionais”
O avanço da reprodução assistida trouxe à tona um impasse jurídico ainda não resolvido no Brasil: filhos concebidos após a morte dos pais, por meio de técnicas laboratoriais, enfrentam obstáculos legais para serem reconhecidos como herdeiros. Sem uma norma específica no Código Civil, esses casos têm gerado insegurança jurídica e decisões judiciais divergentes.
Segundo a advogada Aline Avelar, especialista em Direito das Famílias e Sucessões e sócia do escritório Lara Martins Advogados, o Código Civil de 2002 não reconhece automaticamente o direito sucessório para filhos concebidos por reprodução assistida após o falecimento dos pais. “A lei é clara ao afirmar que somente têm legitimidade sucessória aqueles já nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão. Essa omissão legislativa gera um vazio de segurança jurídica, porque a transmissão da herança ocorre imediatamente com a morte, conforme o princípio da saisine”, explica.
De acordo com a advogada, na prática, existem três correntes interpretativas sobre o tema: uma restritiva: que exclui totalmente o direito à herança; uma intermediária: que reconhece a filiação, mas limita o direito à sucessão testamentária e outra moderna: que defende a plena equiparação desses filhos com base em princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, igualdade entre os filhos, liberdade de planejamento familiar e presunção de paternidade. “Sem uma legislação específica, o reconhecimento desses direitos depende do Judiciário e da prova da vontade do falecido, o que gera litígios e decisões divergentes”.
Nesse contexto, o Projeto de Lei nº 4/2025 surge como uma proposta relevante para suprir essa lacuna. A proposta prevê que filhos gerados por reprodução assistida após a morte dos pais poderão ser reconhecidos como herdeiros legítimos, desde que haja autorização expressa do falecido em testamento público ou escritura pública.
Para a especialista, a medida representa um avanço importante: “A exigência de autorização formal garante que a vontade do falecido esteja clara, evitando disputas e interpretações subjetivas. A proposta traria maior segurança jurídica, uniformização de decisões judiciais, proteção à igualdade entre os filhos e permitiria um planejamento sucessório mais previsível para famílias que recorrem à reprodução assistida.”
A advogada Vanessa Paiva, especialista em Direito de Família e Sucessões e sócia do escritório Paiva & André Sociedade de Advogados, diz que o reconhecimento dos direitos sucessórios dos filhos concebidos por reprodução assistida post mortem é uma consequência lógica da evolução dos princípios constitucionais. “A Constituição Federal garante a igualdade entre os filhos e o direito ao planejamento familiar como expressões da dignidade da pessoa humana. Esses fundamentos devem prevalecer mesmo diante da omissão do Código Civil”, afirma.
Vanessa Paiva destaca que, embora o ordenamento jurídico atual ainda careça de regulamentação específica, a jurisprudência e a doutrina vêm se inclinando para uma interpretação mais inclusiva e protetiva. “Negar a esses filhos o direito à herança seria perpetuar uma discriminação incompatível com os valores constitucionais”, finaliza.
Outro ponto a ser destacado diz respeito aos conflitos que podem surgir entre esses filhos e os herdeiros já existentes. A advogada Mérces da Silva Nunes, especialista em Direito de Família, Heranças e Negócios Familiares, sócia do Silva Nunes Advogados, traz a seguinte situação: “imagine um inventário já em andamento ou até concluído, e depois surge um filho concebido por reprodução assistida: os herdeiros podem questionar se esse descendente deve ser incluído, e em que condições. Isso pode gerar a reabertura da sucessão, disputas judiciais prolongadas e até a anulação de partilhas anteriores”, explica.
Além dos aspectos legais, Nunes ressalta que há também uma dimensão emocional relevante. “Os demais familiares podem não ter ciência ou não concordar com o uso do material genético, o que aumenta ainda mais a tensão nesses processos. Por isso, é essencial que o ordenamento jurídico avance para garantir segurança e previsibilidade nesses casos”, conclui.
Fonte: Aline Avelar: sócia do escritório Lara Martins Advogados, responsável pelo núcleo de Direito de Família e Sucessões. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões, Planejamento Familiar, Patrimonial e Sucessório. Presidente da Comissão de Jurisprudência do IBDFAM-GO.


