Além da hora faturável: por que o jurídico corporativo precisa comprar resultados e não tempo
Por Matheus Martins – Advogado
Durante décadas, o mercado jurídico associou qualidade à quantidade de horas dedicadas. Essa métrica serviu bem a quem prestava o serviço, mas pouco ajudou quem precisava tomar decisões de negócio dentro de prazos, orçamentos e níveis de risco definidos. A inteligência artificial não criou essa contradição, mas tornou impossível ignorá-la. Atualmente, quando uma entrega jurídica pode ser redesenhada como processo e parte desse processo pode ser automatizada, medir valor pelo tempo gasto deixa de fazer sentido.
O modelo da hora faturável construiu um império global avaliado em quase 900 bilhões de dólares, mas ao custo de transformar a produtividade em inimiga da lucratividade. Departamentos jurídicos, ao aceitarem essa lógica, passaram a financiar uma estrutura em que eficiência é penalizada. Estimativas apontam que entre 30% e 60% das horas faturáveis se concentram em tarefas repetitivas, que a inteligência artificial já consegue automatizar em até 90%. Em outras palavras, grande parte do que ainda se cobra como esforço humano já pode ser feito em minutos, com custo e risco muito menores.
A inteligência artificial funciona, nesse cenário, menos como ameaça e mais como catalisador de mudança. Ela revela de forma nítida que boa parte do trabalho jurídico pode ser organizada em fluxos de valor, nos quais cada etapa tem padrão, validação e critério de aceitação. Cabe ao cliente corporativo redesenhar esse contrato e exigir que provedores apresentem workflows claros, documentem o uso de automação, entreguem relatórios consistentes e garantam previsibilidade de prazo e orçamento. Já não basta confiar apenas no prestígio do especialista que vende hora de trabalho, é necessário pedir engenharia de serviço.
O impacto desse reposicionamento não se limita a tirar participação de mercado da BigLaw, mas também abre uma nova fronteira de demanda. Só nos Estados Unidos, estima-se que mais de 70 bilhões de dólares estejam represados em empresas de médio porte e startups que nunca tiveram acesso a assessoria jurídica de alto nível. Ao adotar modelos baseados em tecnologia e preços previsíveis, o jurídico corporativo não apenas melhora sua eficiência, mas ajuda a desbloquear esse mercado oculto.
Os sinais de mudança já são visíveis. No Reino Unido, no Arizona e em Utah, estruturas inovadoras permitem a participação de não-advogados na propriedade de firmas, o que abre espaço para modelos baseados em tecnologia e métricas de desempenho. No próprio Reino Unido, a Garfield.Law se tornou a primeira autorizada a operar inteiramente com apoio de inteligência artificial, oferecendo serviços com SLA, preços fixos e margens semelhantes às de empresas de software. Esses exemplos deixam claro que a transformação não é hipótese futurista, mas realidade em construção. A questão é saber se o jurídico corporativo brasileiro assumirá protagonismo ou se continuará preso ao modelo da hora faturável, que por décadas funcionou como barreira de proteção econômica, mas que agora perdeu sustentação.
Essa mudança não depende da iniciativa dos escritórios, mas da forma como os clientes decidem contratar. Quando departamentos jurídicos começam a exigir previsibilidade, alinhar contratos a critérios objetivos e atrelar remuneração ao valor efetivamente entregue ao negócio, cria-se um círculo virtuoso de estabilidade orçamentária, agilidade nas decisões e accountability real. A hora faturável pode continuar existindo em nichos específicos, mas deixa de ser a régua universal.
Em resumo, a inteligência artificial é apenas o gatilho, pois o verdadeiro fundamento está na gestão por resultados. O jurídico corporativo que liderar essa virada não estará simplesmente adotando tecnologia, mas redefinindo seu contrato com o negócio e, com isso, reposicionando seu lugar à mesa.
*Matheus Martins é sócio do Barcelos Martins Advogados, especializado em assessoria jurídica para startups e empresas de pequeno e médio porte. Com forte atuação em direito empresarial e contratos estratégicos, é defensor de modelos inovadores de prestação de serviços jurídicos que aliam eficiência, previsibilidade e entrega de valor constante aos clientes.


