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A construção da ordem e o nascimento das novas Oligarquias. (Professor Paulo Elpidio de Menezes Neto,)*

Artigo publicado originalmente no site Segunda Opinião.

Um sistema de informação e segurança de um governo de esquerda não difere substancialmente da índole criativa da direita. Nada nestas facções ideológicas, uma vez instaladas nas instâncias do poder do Estado, as diferencia.

Imaginar que os mecanismos de investigação, de condenação e de repressão sejam mais severos nos governos de esquerda do que nos de direita é uma fantasia que não se sustenta. Pela lógica e pelas evidências que a história relata.

Toda a técnica de investigação, análise e repressão desenvolvida no Estado Novo, com a reconhecida criatividade de Felinto Müller, repetiu-se nos governos militares de 1964, aperfeiçoadas, naturalmente, pois que estas técnicas seguem em um processo de constante atualização.

Os interrogatórios realizados pela Polícia Especial de Vargas não eram tão eficientes quanto as inquirições do DOI-CODI, em época mais recente. Do mesmo modo, Torquemada não castigava as almas ímpias e a heresia daqueles tempos, como Himmler o fez com o holocausto dos judeus e a parafernália do seu arsenal de mortes e torturas morais.

Os ímpetos do sistema judiciário, da polícia e do legislativo federal, em face dos riscos pelos quais correm o Estado de Direito e a democracia no Brasil, nestes duas aziagos, ainda não encorajaram, felizmente, o Estado brasileiro a recorrer a métodos de justiçamento tão comuns às ditaduras — e comprovadamente eficazes. Ignora-se porque ainda não se buscou em uma nova Constituição os instrumentos propícios a um intervenção mais firme em defesa da democracia.

O viés totalitário de muitos democratas colados nas alças do governo instiga a adoção de leis enérgicas, de preceitos constitucionais que controlem certas frouxidões legais que inibem a governabilidade.

Não é de estranhar que governos autoritários, alguns deles vulgarmente chamados de ditaduras, apreciem tanto os mecanismos jurídicos que impõem o controle adequado da ordem legal. Nenhuma ditadura que se preze despreza uma base constitucional bem aviada a seu gosto. Uma Constituição, de preferência outorgada pelas convergências da autoridade, é o modelo ideal para certas necessidade da governabilidade…

Os instrumentos de governo criados pelo Estado Novo de Vargas nada mais eram do que a cópia de normas e preceitos aplicados na Itália fascista de Mussolini. Os Atos Institucionais empregados nos governos militares de 1964 recuperaram a técnica jurídica destes mecanismos de coerção e foram justamente aplicados às novas circunstâncias e à cultura de um povo de um país de origens tão diversas.

Juristas de escol emprestaram, em momentos cruciais da nossa República, a sua competência e astúcia para a construção de uma ordem vigiada: Francisco Campos, Carlos Medeiros, Gama e Silva, Alfredo Buzaid…

Assistimos, agora, algum tempo transcorrido, a eventos e episódios inéditos na vida política do País. O seu ineditismo não provém, entretanto, da quebra do equilíbrio constitucional ou da desconstrução das instituições, cuja proximidade é pressentida até mesmo pelos cidadãos mais crédulos. O que as diferencia, é, precisamente, pelo modo como essas ameaças se apresentam e começam a materializar-se, sem que lhe demos maior atenção.

O autoritarismo, que se esconde entre uma aparente normalidade democrática, elegeu, como risco e ameaça esta mesma normalidade democrática, a tolerância indulgente dos excessos verbais a que se entregam os brasileiros e a discriminação cultivada teimosamente contra as autoridades e os políticos.

Uma nação a falar mal dos agentes públicos e dos políticos, segundo especialistas do novo constitucionalismo vigente, e dominada por uma descontrolada predisposição contra a ordem constituída, pode tornar-se presa fácil de uma forma dissimulada de terrorismo cultural. Urge conter estes desvios antibrasileiros, sem concessões.

Império e República têm, no trato da ordem, no Brasil, o mesmo viés vigilante

que exerciam as Cortes no seu consulado colonizador. A palavra, a crítica e a liberdade de expressão foram, sempre, um risco calculado para a ordem constituída.

Os movimentos armados que brotaram pela Colônia, no Império e nesta graciosa República, tão pouco republicana, põem à mostra a vocação incorrigível do brasileiro para as artes da rebelião verbal e, em alguns momentos, para o emprego das armas.

A reação do Estado às inquietações verbais da nação trouxe, ao longo do tempo, como fator cumulativo das ações autoritárias de governos fortes e de exceção, um sistema político centralizador de braços dados com as oligarquias que dominaram o país.

A cada crise, ao sabor de conflitos de interesses que seduziam os atores políticos mais preeminentes, foram se acumulando os restos do rescaldo dos incêndios apagados pelo poder do Estado.

A partir do Estado Novo, da “Revolução” de 1964 e dos movimentos alternativos de “cístole e diástole” democráticos que ocorreram nos tempos recentes, foram sendo depositados no terreno movediço da governabilidade os mecanismos e os controles da palavra e da expressão e o aparelhamento da repressão, servido pelas técnicas jurídicas mais sofisticadas e pelas insondáveis regras de procedimento processual, tão casuístas quão restritivas ao trabalho da justiça.

De tudo, no decorrer desta longa evolução, vimos consolidar-se um sistema de governo autoritário no qual o poder executivo ampliou os seus controles sobre a informação e a segurança “política” do Estado; o judiciário firmou a precedência dos procedimentos processuais e dos mecanismos de uma imensa burocracia forense, em detrimento do mérito substantivo das razões de direito; e o legislativo, com a perda crescente da sua legitimidade, cede, negocia e emudece diante dos favores dispensados aos seus integrantes pelo atores principais do novo sistema.

  • Paulo Elpídio de Menezes Neto  – Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.