O JUDICIÁRIO E MOTIVOS PARA ANULAR CASAMENTO POR ERRO ESSENCIAL
Em recente decisão do judiciário, ainda em primeiro grau, definiu algumas balizas para que venha a existir o efeito de ter um casamento realizado dentro da legalidade formal, seja anulado via decisão judiciária, onde respeita o que regista os artigos 1.550, 1.556, 1.557, e 1.558, todos do digesto civil de 2022
Um homem buscou a Justiça para anular seu casamento. O motivo? Ele alega que contraiu matrimônio com sua mulher em meados de 2024, mas não sabia que ela tinha problemas psiquiátricos.
No pedido de anulação, relatou que se sentiu enganado, vez que antes do casamento a companheira se mostrava lúcida, sem problemas de saúde. Alegou, no entanto, que, após duas semanas de união, a vida do novo casal tornou-se insuportável. Ele afirma que só então descobriu que ela sofria de distúrbios mentais com episódios maníacos, agitação psicomotora, disforia, irritabilidade, agressividade, conflitos interpessoais, gastos irresponsáveis e delírios.
O marido contou, ainda, que, em determinado dia, sua esposa entrou em surto psicótico durante a madrugada e chegou a agredir uma vizinha. Em seguida, ela teria jogado no lixo todos os itens da casa na cor vermelha, afirmando que ouviu vozes que a proibiram de ter coisas daquela cor.
O pedido em questão, erguido pelo marido de anulação foi negado pela juíza de Direito Isabella Luiza Alonso Bittencourt, da 1ª vara Judicial de Cidade Ocidental/GO. A magistrada entendeu que não ficaram comprovados os requisitos estabelecidos pelo Código Civil para a concessão de anulação. Ela, portanto, decretou o divórcio.
Alegou o marido o chamado erro essencial, termo jurídico utilizado para ser anulado o casamento, onde de forma aparente alguém tinha uma forma de proceder, e em relação mais próxima, se apresentou de outra forma, mas o juízo não vislumbrou na narrativa e nos dados probatórios, os requisitos essenciais para anular o casamento, e assim, utilizando a economia processual, negou o pedido pleiteado, e o transformou o pedido em divorcio, ou seja, o erro essencial não se fez presente.
De forma simplificada, o divórcio é o processo realizado para dissolver um casamento ocorrido de forma legal, enquanto a anulação invalida um relacionamento devido a alguma infração à lei.
No divórcio, por exemplo, o estado civil do sujeito passa de casado para divorciado.
Quando se trata de anulação do casamento, é como se o matrimônio nunca tivesse ocorrido, e o “ex-casado” retorna ao estado de “solteiro”.
Erro essencial sobre a pessoa: quando um fato desconhecido pode acabar com o casamento
O que diz o Código Civil?
O CC/02 prevê que é possível a anulação do casamento em determinadas circunstâncias. Veja o dispositivo aplicável ao caso da Cidade Ocidental/GO:
Art. 1.550. É anulável o casamento:
(…)
III – por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
(…)
Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
II – a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal;
III – a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;
Art. 1.558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares.
A juíza, por sua vez, entendeu que, no caso, não estão presentes as condições exigidas pelo Código Civil para concessão da anulação. É que nos autos, diversos depoimentos, inclusive do próprio marido, deixaram evidente que a relação das famílias do casal era antiga e que ele era, inclusive, compadre da mãe de sua esposa.
Ele admitiu que sabia que ela usava medicamentos, mas que desconhecia a finalidade deles. Testemunhas, contudo, relataram que frequentemente o casal ia junto buscar o medicamento dela.
Diante das provas, a magistrada considerou estar visível no processo que o marido possuía, sim, ciência de que a companheira fazia tratamento médico periódico, o que demonstra não ser verdade que ele só descobriu a doença dela após o casamento, circunstância exigida pelo Código Civil para a anulação.
Perspectiva de gênero e machismo estrutural
A juíza ressaltou que a análise do processo foi feita com base no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, “uma vez que tal óptica oferece um olhar crítico sobre as desigualdades sociais e jurídicas, destacando o impacto desproporcional sobre as mulheres”.
Isabella acrescentou que, no âmbito jurídico, a aplicação do protocolo em questão busca promover decisões mais equitativas, considerando não apenas a igualdade formal, mas também as barreiras estruturais que perpetuam desigualdades.
“Sabe-se que, historicamente, muitos homens foram criados para buscar mulheres que se encaixassem em padrões idealizados, tais como beleza impecável, submissão, habilidades domésticas e maternas, caráter irrepreensível, de modo que, com a convivência, ao se depararem com mulheres ‘reais’ com desejos, limitações e personalidade própria, poderiam se sentir enganados ou decepcionados, gerando, em algumas oportunidades, pedidos como a presente demanda.”
Apesar de reconhecer avanços sobre tal situação ao longo dos anos, com notórias repercussões no âmbito jurídico, Isabella Luiz Alonso apontou a problemática do machismo estrutural.
“É inequívoco que o machismo estrutural continua presente em nosso ordenamento jurídico, sendo essencial que a concepção do casamento se transforme em um modelo mais inclusivo e humano, fundamentado na igualdade, no respeito, deixando para trás ideais ultrapassados e excludentes, mormente considerando que a mulher não deve ser vista como um objeto nas relações e também que seu valor não deve ser medido com base em sua capacidade de atender as necessidades do marido.”
Os motivos que podem levar à anulação, por erro de pessoa, mudaram muito ao longo dos anos. No primeiro CC, por exemplo, uma das possibilidades previstas era o defloramento da mulher, desconhecido pelo marido. Em outras palavras, era a possibilidade da anulação do casamento em casos nos quais o homem descobrisse, em até dez dias, que a esposa não havia se casado virgem. Essa previsão só deixou de existir, de fato, após a entrada em vigor do CC de 2002 – mesmo com a equiparação entre homens e mulheres prevista pela CF/88.
Atualmente, o CC/02 considera, para que se configure “o erro essencial quanto à pessoa do outro”, aspectos mais subjetivos, como, por exemplo, o que diz respeito à identidade, honra e boa fama. O advogado explica que essa questão é sensível, uma vez que depende de critério individual do que pode, por exemplo, afrontar a boa fama de alguém.
Por exemplo: o desconhecimento do marido à vida anterior de sua esposa, que poderia ter sido prostituta ou garota de programa, ou que ela tenha sido atriz de filmes pornográficos. “Isso poderia ser motivo de anulação de casamento?”, questiona. Para algumas pessoas, esse caso pode ser uma situação muito grave, que enseja a anulação, mas, para outras, pode ser relativizado. Para estas questões, portanto, cabe ao Judiciário a decisão final.
A proposta de reforma do Código Civil (PL 4/25), que tramita no Senado, mantém a disposição sobre o erro essencial, que, se aprovada como se encontra atualmente, passa a estar contida no art. 1.559:
“Art. 1.559. Somente o cônjuge que incidiu em erro essencial, sofreu coação ou foi vítima de dolo, pode demandar a anulação do casamento.”
Assim, temos a noção de que o casamento continua sendo uma instituição jurídica confiável.
Jales de Figueiredo